Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

04.03.24

Novos Contos d' África (I)


blogdaruanove

 

 

Novos Contos d' África (1962).

Capa de Manuel de Resende (1908?-1977?).

 

Esta segunda antologia de contos da colecção Imbondeiro, que sucedeu à publicada no ano anterior, apresenta obras de Alfredo Margarido (1928-2010) – A Osga, Artur Carlos Pestana (n. 1943)  As Cinco Vidas de Teresa, Djamba Dalla (pseudónimo de Dulce Ferreira Alves Mendes de Vasconcelos, n. 1927) – Terei Eu Perdão?, Henrique Abranches (1932-2004)  Sangue como Chuva Seca, Henrique Guerra (n. 1937) – Virgínia Voltou, Horácio Nogueira (n. 1925)  Chilombo, Ingo Santos (Arnaldo Santos, n. 1936) – Joana de Cabo Verde, Julieta Fatal (datas desconhecidas)  Uma Velha que Tinha um Gato..., Luandino Vieira (n. 1935) – Os Miúdos do Capitão Bento Abano, Maria Perpétua Candeias da Silva (datas desconhecidas)  Escrava, Orlando Távora (pseudónimo de António Jacinto, n. 1924) – Vôvô Bartolomeu, Pedro Sobrinho (n. 1936) – Terra de Sol, e Reis Ventura (1910-1988) – O Drama do Velho Cafaia, conjugando num único volume a produção de dissidentes e escritores afectos ao regime do Estado Novo.

 

Tal opção editorial é sublinhada pelos editores, Garibaldino de Andrade (1914-1970) e Leonel Cosme (1934-2021), que declaram no seu preâmbulo a este volume – "Em Literatura – como noutras coisas – há quem não pense da mesma maneira, e a esse tipo de liberdade que preferimos, por não dar ensejo a dogmatismos, costumam chamar nomes feios. São os riscos próprios dos que não assinaram pactos nem tratados, dos que não crêem que um deus valha mais ou menos do que outro deus, dos que concluíram para si próprios que toda a espécie de hermetismo ideológico é um atentado contra a liberdade de pensamento – o mais sagrado direito do escritor."

 

O compromisso desta linha editorial torna-se evidente quando, nesta colectânea, coexistem narrativas que ecoam as sublevações e os massacres de 1961, em contos como Terei Eu Perdão? ou o Drama do Velho Cafaia, cujos enredos assentam na violência física e nas angústias e traumas decorrentes destes confrontos, junto da obra de um autor como Luandino Vieira, contestário do regime que, precisamente desde 1961, se encontrava encarcerado por motivos políticos.

 

Continuando também o compromisso da Imbondeiro em promover as artes plásticas como complemento das suas publicações, esta colectânea apresenta cinco ilustrações de diferentes artistas – duas de Fernando Marques (1934-2017),  duas de João Manuel Mangericão (1936-2022) e uma de Luandino Vieira.

 

 

Ilustração de Luandino Vieira para o conto Os Miúdos do Capitão Bento Abano.

 

O conto de Luandino Vieira surge na continuidade das tendências temáticas anteriormente patentes em A Cidade e a Infância (1960), as quais haveriam de voltar a surgir nos três contos apresentados em Luuanda (1963), como a vivência nos bairros da periferia urbana, a memória e a infância.

 

Sobre Luandino Vieira, refere a breve nota presente neste volume: "Luandino Vieira é pseudónimo de José Graça. Nasceu em Luanda em 4 de Maio de 1935 e é empregado comercial. Colabora em várias publicações angolanas. Representado nas colectâneas «Contistas Angolanos» e «Poetas Angolanos». Publicou «A Cidade e a Infância», contos, 1960. Colaborou nos n.ºs 14 e 23 da «Colecção Imbondeiro»".

 

De Os Miúdos do Capitão Bento Abano transcrevem-se, então, os primeiros cinco parágrafos:

 

"Alcunha, quando a gente tem, tem por alguma razão. Esta opinião sustentava sempre que o acaso me juntava com Zeca Bunéu e Carmindinha, recordando Xoxombo. Tunica nunca mais esteve presente nessas reuniões, a vida levara-a para a Europa, com seu jeito de cantar rumbas e sambas. Menina-perdida, dizia para nós sá Domingas; a vida é grande e não são só as palavras que chegam para mudá-la, justificávamos nós. Carmindinha silenciava, não punha opinião, mas sabíamos que lhe era dolorosa a recordação da irmã Tunica.

 

Nossas reuniões eram, às vezes, em casa de sá Domingas, quando eu namorava Carmindinha. Zeca Bunéu vinha depois, com seu assobio-de-bairro, chamar-me para o café, mas acabava sempre por ficar na conversa. E com sá Domingas, já velha de cabelos brancos e Bento Abano ainda lendo o jornal sem óculos, calado no seu canto, quantas vezes não recordávamos! Invariável, porém, a presença de Xoxombo em nossa conversa, emboras as lágrimas  corressem pelo carão negro e já muito enrugado da mãe. Carmindinha contava, sempre igual, sua versão de alcunha de Xoxombo. E a defendia, séria. Zeca Bunéu, com sua maneira de contar as coisas, escolhia a versão mais conhecida, a de mais malandragem, aquela que servia seu feitio de menino malandro mas bom, dado a contar histórias à sua maneira. Eu não emitia grande opinião. Gostava, é verdade, de ver Zeca Bunéu, com grandes gestos e risadas, os olhos muito grandes piscando, contar a história na sua versão. Mas olhava com amor para Carmindinha, às vezes zangada, defendendo o irmão. Só quando sá Domingas começava a chorar pela recordação que lhe fazíamos e Bento pigarreava na sua cadeira de bordão, eu interrompia. Mal, confesso. Insistia apenas no facto real: alcunha, quando alguém tem, há uma razão e se toda a gente referia Xoxombo da mesma maneira, pouco importava a a origem ou versão da alcunha.

 

Depois saíamos. Carmindinha vinha connosco, deixava que eu lhe apertasse os seios pequenos debaixo do kimono, ao segurá-la para o beijo à porta. E, com Zeca Bunéu, de noite, ia quase sempre passear à toa, pela nossa cidade adormecida.

 

Hoje, dia dois de Novembro, encontrei Carmindinha à saída do Cemitério Velho e viemos para baixo, no maximbombo da linha dois. Foi este encontro o primeiro depois de uma zanga que durou anos e nele não precisávamos mencionar Xoxombo: esteve sempre connosco, no fato preto e no cheiro enjoativo que as flores-de-mortos deixam nas pessoas. A sua história, desde essa hora, impôs-se. O tempo diluiu pormenores, esbateu insignificâncias, mas iluminou o que importa.

 

Afastado de Carmindinha todos esses anos, subtraí-me à sua influência, à sua bondade na defesa do irmão. E, sem Carmindinha presente, eu e Zeca Bunéu nunca mais falámos de Xoxombo. Sentir-me-ia culpado se não contasse a história. Talvez agora, com os elementos que os anos depositaram em mim, vindos das mais variadas versões, possa ser fiel à história de Xoxombo. Se não conseguir, a culpa não é dele, nem da aventura que lhe valeu a alcunha. É minha, que meti literatura onde havia vida e substituí calor humano por anedota. Mas eu conto na mesma."

 

© Blog da Rua Nove

16.02.24

Carlos Gouveia - Utanha Wátua


blogdaruanove

 

 

Carlos Gouveia (1930-2006), Utanha Wátua (1972).

Capa de Alfredo Freitas (datas desconhecidas).

 

Este volume integra a colecção Cancioneiro Angolano, que, sob a direcção de Filipe Neiva (António Filipe Sampaio Neiva Soares, n. 1940), Orlando de Albuquerque (1925-1997) e Wolfango de Macedo (Fernando Aníbal Wolfango Pereira de Macedo, n. 1931), já havia publicado Angola Poesia 71 e anunciava a próxima publicação de As Vozes Perguntam, de Orlando de Albuquerque, O Silêncio das Cidades, de Artur Queiroz (n. 1945), Fase 1, de João Serra (1950-2013) e Também já fomos um, de Ruy Burity da Silva (n. 1940), obra que já se anunciava em 1969 mas da qual não há resgisto posterior .

 

Autor de O Vagabundo da Cidade (1972), Olowali Yeto (1978), Na Rota dos Escravos (1994), em prosa, e de Olusapo (1980), A Noite do Meu Exílio (1992), De Benguela - Poemas de Amor e Não Só (1995), em verso, Carlos Gouveia colaborou em diversas publicações periódicas angolanas, como Intransigente, Jornal de Benguela, Jornal de Angola, Sul e a província de Angola. As crónicas publicadas neste último jornal, sob título homónimo, foram reunidas no primeiro volume acima referido.

 

Em 1967 foi galardoado com o primeiro prémio de poesia lírica nos jogos florais de Benguela, com o poema Prece a mamã Chica, reproduzido na presente obra, estando alguns dos seus poemas incluídos na Antologia de Poetas Ultramarinos (1971), organizada pela revista Prisma.

 

O volume Utanha Wátua apresenta 40 poemas cujas temáticas oscilam entre memórias do passado e da infância (A Idade da Fruta, O meu barco de bimba, Para lá do rio), a realidade social e racial de Angola (Chão de Terra, A Última Esperança, Dona Margarida, Madalena), o desespero latente e a ânsia por um quotidiano diferente (Motivo para um Poema, Um Poema em cada Rosto, Calulú), onde se enredam os encantos e desencantos de Benguela, e dos seus bairros suburbanos, sobre os quais pairam indizíveis indignidades e silenciadas injustiças. 

 

Manuel Nunes Cardiga (n. 1933?) faz ainda outras leituras, no seu prefácio à obra: "Poeta da negritude, Carlos Gouveia? Antes, poeta dos humildes, sem olhar à pigmentação da pele. Poeta dos dramas que super-abundam no mundo sub-urbano de qualquer cidade angolana, tornado paladino da compreensão e da fraternidade."

 

O mesmo crítico prossegue a caraterização do autor e da sua poesia acrescentando: "(...) imagens da sua vida real, ao longo do eterno peregrinar de 35 anos, através desta Benguela de feitiços, cazumbi, praias morenas, bairros e sanzalas marginais, prenhes de sofrimento e angústias."

 

Transcreve-se, de seguida, o poema que dá título a esta obra, um poema que parece ser de um minimalismo elementar, superficial e quase repetitivo, mas onde as revoltas contidas e os protestos silenciados se insinuam e sobrevivem.

 

Aliás, na dedicatória manuscrita, patente neste exemplar da obra, Carlos Gouveia refere: "(...) oferece o autor estes poemas da verdade. Toda a verdade é dolorosa por isso a reprimimos. (...)"

 

"O Sol queima

a pele das pessoas,

a cabeleira da terra

fica ressequida,

gretada,

faminta,

desolada...

 

E o grito ecoa

nos espaços siderais:

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA !

 

Lá nos longes, na montanha,

o calor queima a terra,

 o coração do homem

fragmenta-se,

a paisagem alimenta-se

de solidão...

 

Terra grávida de sede,

Homem vazio de esperança,

Milho enfezado,

mandioca desenraizada,

paisagem dolorida,

Sol de Fogo

a escaldar cabeleiras;

 

Lavra ressequida,

Céu límpido,

núvens brancas,

rosto negro,

suores frios

no calor do drama...

 

Chuva que não vem

matar a sede;

Fome que aumenta,

lavra perdida,

anémica;

Frutos pendentes,

doentes;

Pedras frias,

mudas;

Cão esquelético,

dorme,

um sono de ossos;

Abutre espreita

a vida que morre;

Homem corre

léguas de suor;

Chora,

lágrimas de dor;

Grita,

vozes de séculos;

Gesticula,

movimentos de criança !

 

A seca persiste,

a terra existe,

as raízes murcharam,

os olhos fecharam,

as bocas saciaram

mil protestos.

E o grito ecoa

nos espaços siderais:

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA ! ...

 

A paisagem magoada

colocada a nú

a escravidão do mundo ! ..."

 

© Blog da Rua Nove

07.11.23

Revista Cultura (II)


blogdaruanove

 

O número 28 desta revista apresenta o conto Destino de Bia Rosa, de Onésimo Silveira (1935-2021).

 

Natural de S. Vicente, onde concluíu os estudos liceais, estudou depois em Portugal, onde frequentou a Casa dos Estudantes do Império. Na última metade da década de 1950, após haver regressado temporariamente a Cabo Verde, passa a viver durante alguns anos em São Tomé e Príncipe, onde convive com Alda do Espírito Santo (1926-2010), fixando-se depois, a partir de 1959, em Angola.

 

Posteriormente passou algum tempo na China, estudando em seguida, ainda durante a década de 1960, na Universidade de Uppsala, na Suécia, instituição onde se veio a doutorar, em 1976.

 

Depois de, nessa década, trabalhar algum tempo na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, Onésimo Silveira tornou-se o primeiro presidente eleito da Câmara Municipal do Mindelo, vindo depois a ser embaixador de Cabo Verde em Portugal.

 

Nas áreas do conto e da poesia publicou Toda a gente fala: Sim, senhor (1960), Hora Grande; Poesia Caboverdiana (1962), A Saga das As-Secas e das Graças de Nossenhor (1991) e Poemas do Tempo de Trevas, Saga, Hora Grande (2008). Em 1960, o número 9 da Colecção Imbondeiro, que apresentou a primeira obra acima referida, anunciava ainda a futura publicação de uma colectânea de contos intitulada Maré Cheia, de que não foi possível encontrar registo de edição.

 

Do conto Destino de Bia Rosa transcreve-se um excerto, corrigindo já as diversas gralhas apresentadas na revista mas mantendo a grafia da época:

 

"O sol a pique tudo abrasava. O barulho ensurdecedor da fábrica de óleo de palma era uma nota fastidiosa no meio da calmaria.

 

Nas senzalas os que conseguiram findar a sua tarefa estendiam-se à sombra para se recomporem; outros limpavam e arrumavam os seus tarecos porque no dia seguinte – domingo – chegavam serviçais caboverdianos.

 

Chegou a tarde e, depois, a noite que envolveu em densa escuridão a roça inteira. Tão sòmente as lâmpadas espalhadas em redor da casa do patrão quebravam, com a sua luz amarelada, a monotonia que invadira as senzalas.

 

Domingo.

 

Nove horas e já todos os serviçais se acham em casa. Preparam com mais cuidado o almoço e as raparigas vestem os seus vestidinhos melhores.

 

O ronco de um motor alvoroçou os caboverdianos, após período de longo e desacostumado silêncio. Era a camioneta da roça que assomava lá ao cimo da encosta que dá para o terreiro. As pessoas que vinham nela, tontas de calor não davam sinal de vida...

 

Chegou enfim!

 

Mantenhas, encomendinhas, abraços, choros, novidades! De todos os lados chovem perguntas.

 

– Trouxemos dois violões, um cavaquinho e um banjo – respondeu Lela Canhota a pergunta de Pedrim.

 

– E grogue? – indagou Pedrim novamente.

 

– Grogue! O que os safados dos guardas não nos tomaram em Fernão Dias está connosco.

 

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

 

Nunca a roça vivera momentos de tanta euforia! Os serviçais pediam mornas. – «Mornas novas»! – gritavam – mornas de B. Léza!

 

À tristeza do anoitecer dos dias anteriores sucedeu uma série de canções dolentes que tanto diziam aos seus executantes – que lhes restituiam parte da alma deixada na terra natal!

 

Pedrim convidou a primeira dama a jeito e, com alguns cálices de grogue já enfiados, desatou a mornar, a mornar..."

 

© Blog da Rua Nove

31.08.22

José Luandino Vieira - Luuanda


blogdaruanove

 

José Luandino Vieira (pseudónimo de José Vieira Mateus da Graça, n. 1935), Luuanda (1963; presente edição, 1983).

 

A obra Luuanda foi galardoada em 1965 com o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE), embora o texto tenha sido entretanto revisto e surja, em edições posteriores, com uma datação delimitada pelo próprio autor, como acontece no presente volume, entre 1963 e 1972.

 

O facto de Luandino Vieira ter estado encarcerado entre 1961 e 1972, devido à sua actividade política de constestação ao regime salazarista e à política ultramarina deste, e ter sido galardoado com aquele prémio originou uma forte contestação e criou uma polémica que levou à extinção da SPE.

 

As capas da edição brasileira de 1965 e da primeira edição portuguesa lançada depois do 25 de Abril de 1974 podem ser vistas  num anterior artigo (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/14967.html).

 

Esta obra apresenta três contos – Vavó Xíxi e seu Neto Zeca Santos, Estória do Ladrão e do Papagaio, Estória da Galinha e do Ovo, que podem ser considerados, sob diversos aspectos, como visões alternativas à Luanda que Reis Ventura (1910-1988), escritor vinculado ao regime, havia descrito e narrado na sua trilogia (Cenas da Vida de Luanda) dedicada à cidade e iniciada na década anterior – Quatro Contos por Mês (1955), Cidade Alta (1958) e Filha de Branco (1960).

 

© Blog da Rua Nove

21.06.22

M. António - Crónica da Cidade Estranha


blogdaruanove

 

M. António (Mário António Fernandes de Oliveira, 1934-1989), Crónica da Cidade Estranha (1964).

 

Ensaísta, ficcionista e poeta, Mário António havia publicado até à data de edição desta obra os seguintes livros de poesia Poesias (1956), Amor (1960), Poemas & Canto Miúdo (1960), Chingufo - Poemas Angolanos (1962; prémio Camilo Pessanha), 100 Poemas (1963; prémio Ocidente) e o romance Gente para Romance: Álvaro, Lígia, António (1961), para além de ter colaborado em diversas revistas, como Mensagem (1952), e publicado alguns ensaios.

 

Posteriormente haveria de publicar Farra de Fim-de-Semana (1965), Mahezu (1966), Era Tempo de Poesia (1966), Luanda - Ilha Crioula (1968), Rosto da Europa (1968), Coração Transplantado (1970) e inúmeros ensaios que marcariam o seu percurso académico e de investigação, o qual culminaria num Doutoramento em Estudos Portugueses, com especialização em Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (1987).

 

Depois de concluir o curso liceal, em Luanda, foi observador meteorológico de 1952 a 1963, ano em que passou a frequentar, em Lisboa, o curso de administração ultramarina no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Enquanto activista político, colaborou na fundação do Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (1953) e do Partido Comunista Angolano (1955), partidos que haveriam de estar na origem do Movimento Popular de Libertação de Angola, fundado em 1956.

 

É ainda autor da letra do conhecido Poema da Farra, musicado e cantado por Ruy Mingas (n. 1939).

 

A presente obra divide-se em duas secções – a primeira, com uma narrativa mais longa, datada de 1957-58, que se desenrola ao longo de 83 páginas e XV capítulos; a segunda, intitulada Apêndice, com um conjunto de dez textos mais curtos, ostentando títulos diferenciados cada um, apresentados ao longo de 32 páginas.

 

Do capítulo XIV transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Ele ama os cheiros da cidade como ninguém. ou talvez não seja bem assim. há os que os não sentem, mergulhado sempre neles; e há os acostumados aos ambientes esterilizados, inodoros (mas têm um cheiro, sim, que ele já sentiu!), que deitam a mão ao nariz quando o seu apurado olfacto acusa certas presenças incomodativas. Incomodativas e plebeias.

 

Mas ele acha que sim, que tudo tem um cheiro. E os únicos cheiros que não ama são precisamente aqueles que a patroa não sente na casa onde tem de limpar constantemente os móveis, o chão, tomar banho (a patroa sempre aflita com o seu cheiro de catinga), cheiros que não são da vida, mas só cheiros, isolados, incomodativos. Sim, esses realmente incomodativos: o «polish», a graxa, a cera e, agora se lembra, aquelas coisas que fazem da senhora uma pessoa diferente, depois que ela se fecha no quarto para se preparar.

 

Dos outros cheiros ele gosta, ou melhor: entrega-se-lhes. O cheiro a terra, material, entrando pelas narinas, da sua cubata. Cheiro variável com o tempo. Enorme, envolvente, colando-se ao corpo, quando o Sol do meio-dia reduz as sombras; repousante, sossegado, à noite, quando a paisagem dorme; inquietante, como uma mulher, quando a chuva se vai embora e pingos desgarrados tamborilam no zinco do telhado.

 

Há ainda os vários cheiros da vida, os cheiros das aglomerações humanas. De todos, o mais complexo, vário, colorido, gritante, é o do mercado, com as mulheres sentadas no chão, as quindas à volta, um abano a afugentar as moscas que querem pousar nos bagres secos, negros e submetálicos; no bombó assado; na batata-doce escondendo sob a pele queimada, baça, uma quentura amarela; nos dendéns vermelhos; nos limões de casca seca e ácida; nos cocos cor de capim da cubata... ou então em coisas que ele aprecia mais mas que são raras, misteriosas e estranhas, como o jinjimo ou o muxilo-xilo, cada um exalando o seu cheiro, numa longa gama, com gradações, correspondências e contrastes, dispersões e tempos mortos, pausas e sequências até ao infinito, numa composição avassalante. Diante do mercado – a mais complexa composição de cheiros que conhece –, ele não resiste: entrega-se. E fecha os olhos precisamente pela mesma razão por que o senhor doutor fecha os dele, ao pé da telefonia, a ouvir aqueles sons que ele também gostaria de entender, mas só lhe chegam de mistura com o tinir da louça que lava.

 

E os cheiros acres, poderosos, construtivos, dos homens no trabalho? Lembra-se de quando trabalhou na estrada, a picareta, na longa fila de homens vergados. Um cheiro que tinha modulações, ia a dizer, musculares, se retinha e expandia, e martelava com um som cavo e compassado nas suas narinas. Um cheiro poderoso, hipnotizante, que identificava os homens.

 

Também lhe agradavam os cheiros da praia, das formas coloidais que a maré vazante deixa sobre a areia, um cheiro que parece vir de baixo da terra e sobe, sobe, até afogar um homem. Ou o cheiro do fumo das fogueiras em que se assam mabangas, vivo, pontuado de renúncia e estranhamente apetitoso. Ou ainda o cheiro do peixe a secar ao sol, tão identificado com a luz que dir-se-ia vir do alto e ocupar todo o espaço."

 

© Blog da Rua Nove

20.04.22

Jorge Ferrão Cardoso - Caravana


blogdaruanove

 

Jorge Ferrão Cardoso (datas desconhecidas), Caravana (1948).

Desenho da capa de Raúl Coelho (datas desconhecidas).

 

Tal como haveria de vir a suceder com o seu segundo livro, já aqui referido (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/ferrao-cardoso-terra-sol-e-aventura-23828), Terra, Sol e Aventura (1956), igualmente uma colectânea de contos, o presente volume incorpora dois contos cuja acção decorre em Trás-os-Montes – Vida Silenciosa e Entardecer Tranquilo, este último espacialmente localizado entre Carrazedo de Montenegro e Santa Maria de Émeres, e dois outros com cenários e enredos exóticos – Trono de Marfim e Doze Horas em Honolulu, verificando-se que apenas três dos seus doze contos apresentam referências africanas ao longo da acção – Do Diário de António Firmino, Mocambos ao Luar e Angústia.

 

Do conto intitulado Do Diário de António Firmino transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Há festa na senzala do lado de lá do rio. Os tambores sôam sincopadamente. No silêncio que nos envolve, aquele ruído surdo trás até nós algo de misterioso e ardente.

De cá, vemos brilhar as labaredas da fogueira. É um clarão avermelhado onde, esfumadas e imprecisas pela distância, se recortam silhuetas negras, trementes de sensualidade na dança erótica.

Os meus ganguelas, anichados em redor do fôgo, fitam sonolentamente o clarão longínquo e quedam-se num  mutismo que tem algo de feroz e primevo.

Mais tarde, um deles fala. Murmura imperceptìvelmente. Conta a história de «Saleia, a pantera», a mesma lenda que escutei numa noite de sangue, no Baixo-Cuito.

«... Saleia veio, de noite, do alto da montanha e roçou a planície. Malala, o feiticeiro, deu a sua carne seca na penúltima hora escura e agora que Saleia tinha provado sangue humano, os seus rugidos eram mais fortes e mais próximos, e os seus olhos brilhavam contìnuamente por  entre os troncos da floresta.

Naquela noite Bangu teve festa. Pela anhara imensa veio gente dos outros povos, e a sagrada fogueira iluminou a senzala.

O batuque durou toda a noite. A capata toldou os espíritos, e o pirão com belos «condutos» alimentou os corpos negros, estuantes de sensualidade.

O som cavo dos tambores num ritmo bárbaro ecoava pela selva, e lá longe, nos outros povos, a gente velha escutava e dizia: «Ouvi! Há festa em Bangu!»

Na penúltima hora da noite, Malala tomou o fogo que havia de incendiar a anhara. Ele invocou Saleia, a deusa do Fogo, e correu para o mato. Quando na planície se começaram a erguer chamas rubras, Malala caiu morto. Todos tinham visto que a pantera enfrentara o fogo. Ela era a Deusa! Acaso teme o fogo o próprio fogo? Era Saleia! Saleia, a deusa! 

Saleia voltou depois, durante muitas noites. Ela gostava de Bangu, e da selva próxima os seus rugidos vibravam no ar e chegavam até à senzala. A Deusa queria carne! Desde que provara sangue humano, todas as noites os seus urros sequiosos acordavam Bangu...»

Não ouço o fim da história. é como se outro ser estivesse  dentro do meu, roubando-me o sossego. Aqueles ganguelas ingénuos contam sucessos raros, e eu, embora seja mais culto do que eles, não consigo apreender todo o sentido de tão estranhas narrações. Sinto-me como se não tivesse pátria!"

 

© Blog da Rua Nove

26.01.22

Costa Andrade - Poesia com Armas


blogdaruanove

Costa Andrade (n. 1936), Poesia com Armas (1975; presente edição, segunda, 1977).

Capa de Sebastião Rodrigues (1929-1997).

 

Depois de estudar no Huambo e no Lubango, Francisco Fernando da Costa Andrade viajou na década de 1950 para Portugal, onde cursou arquitectura e se envolveu na dinamização das actividades da Casa dos Estudantes do Império. Posteriormente seguiu para o exílio, passando pelo Brasil, por Itália e pela Jugoslávia, antes de se juntar à guerrilha angolana, já durante a década de 1960.

 

Na sua actividade literária, política e militar adoptou diversos pseudónimos, como Africano Paiva, Angolano de Andrade, Fernando Emílio, Flávio Silvestre, Nando Angola, Wayovoka André ou Ndunduma Wé Lépi enquanto guerrilheiro.

 

Antes de esta obra, Costa Andrade havia já publicado Terra de Acácias Rubras (1960) e Tempo Angolano em Itália  (1962), publicando posteriormente O Regresso e o Canto (1975), Caderno dos Heróis (1977), O País de Bissalanka (1980), O Cunene Corre para Sul (1981) e Luanda: Poema em Movimento Marítimo (1997), entre outras.

 

Neste volume, que apresenta um prefácio ensaístico de Mário de Andrade (Mário Pinto de Andrade, 1928-1990), reunem-se poesias de diferentes cadernos, todos datados de antes da independência de Angola – O Capim Nasceu Vermelho (Huambo, 1960 - Lisboa, 1961), Canto de Acusação (1961 a 1963), Cela 1 (São Paulo, Brasil - Abril de 1964), Flores Armadas (1970...), O Guerrilheiro (Moxico, 1969, 1970 e 1971), O Amor Distante (Angola, 1969), Requiem para um Homem (1973), O Povo Inteiro (1974), O Lundoji e o Eco (Setembro de 1974) e O Futuro Nasceu da Noite (25 de Outubro de 1974).

 

Poeta profundamente emocional, atitude a que se alia uma sólida formação intelectual, Costa Andrade deixa transparecer na estrutura e nos conceitos de alguns dos seus poemas, particularmente nos mais longos, uma certa influência da heteronímia pessoana e, consequentemente, uma certa ressonância whitmaniana.

 

No conjunto destes cadernos consegue também, habilmente, entrelaçar traços profundamente líricos e amorosos com registos característicos de manifesto político, revelando um notável equilíbrio entre a sensibilidade do poeta e a vivência do guerrilheiro.

 

Transcrevem-se de seguida três poemas, que integram respectivamente os cadernos Flores Armadas, O Guerrilheiro e O Amor Distante:

 

ENXERTIA

Teu corpo mulata

é o corpo da vida nova

é o corpo do futuro.

 

Olha para ti

descansa os olhos sobre as coisas

desenha com os dedos na areia

a nossa humana geografia

 

verás as rosas enxertadas nas acácias

darem flores mais belas que elas próprias.

 

EMBOSCADA

O dia estranhamente frio

o tempo estranhamente lento

a vegetação estranhamente lenta

a estrada estranhamente clara

todos estranhamente mudos

placados e estranhamente à espera.

 

                    Um tiro

                    e as rajadas uns segundos

 

até que estranhamente duro

o silêncio comandou de novo os movimentos.

 

Talvez fossem homens bons os que caíram

mas cumpriam estranhamente o crime

de assassinar a pátria alheia que pisavam.

 

 

A PARTIDA

As horas chamaram-me.

 

Porquê que o tempo tem medida

e abre com punhais o seu avanço?

 

Por medo

não olhámos os relógios

nem em torno

nem nos olhámos

não nos falámos

com medo que as palavras

                                      as luzes

                                             as coisas

nos prendessem com cadeias inquebráveis.

 

Eram retratos dos pais

               e dos amigos

                     as casas velhas

o nosso quinto aniversário

as praias e os navios grandiosos

o que víamos.

 

Os murmúrios desgarrados

das presenças

parecem lianas poderosas.

 

                Mas quem mede o tempo agora?

                Quem tem coragem de dizer-me

                        que o tempo é um comandante

                                com plumas nos dedos ansiosos?

 

Oh paisagem da minha infância!

Oh mulemba solitária!

 

              As praças estão mais iluminadas

              a gente fala mais

              as vozes mecanizadas

              anunciam a partida de aviões

              para Tóquio ou Buenos Aires

                            não importa.

 

Corpo presente eu sinto as tuas mãos

                                                                 humedecidas

como se os olhos se tivessem transplantado

para chorar escondidos do luar

              e da hora exacta.

 

Longe 

os homens morrem sob a fúria americana de matar

e nós aqui sem palavras

              sem gestos            sem silêncio

não sabemos se a partida se retarda

não sabemos nada

queremos nada saber como se pedras

como se asfalto que encurta os pólos

               dos dois mundos em rotura.

 

Mas quem é esta gente

              que nos recorda sermos dois

                            nos instantes que antecedem o vulcão?

 

Não quero ouvir ninguém!

Não quero ouvir ninguém

              que eu sou um homem transformado

                     em temporal.

Eu não inventei os aviões

nem construí os aeroportos

              apenas me senti discriminado

                     homem sem sombra

                             a quem roubaram a juventude

                                    e os ecos.

 

Eu vou partir

             pagar um preço

                     para ser homem igual

                             ao mundo

                                   e pelo mundo em frente.

 

Não afastes o teu rosto desse espelho

                quero olhar-te assim sem que me vejas

                quero descobrir-me um braço mais

                o que parte a empunhar metralhadoras

                e os que ficam para estreitar-te

                num abraço permanente.

 

                A morte pode talvez supreender-me,

                um guerrilheiro pisa caminhos

                               que ninguém traçou

                        e a moradia dos seus passos

                        é um medo feito de mil coragens

                        reunidas

                                       no dever

                                 e no amor de olhar a própria terra

                 como quem beija um botão de rosa.

 

Não alongues o olhar agora

              que te vejo mais serena

quero beijar-te como se beija uma laranja sequioso

 

um laranjal que nos perdesse

para sempre

               entre os seus perfumes acres

                                                                 e suaves.

 

Dêem-me laranjas

dêem-me laranjas tão doces

                                      que os meus lábios

saibam pronunciar apenas paz

e desconheçam lágrimas de sal

e corações que batam apressados.

 

Os canhões       as armas       esperem do futuro

               museus da bestialidade humana

                a liberdade seja o fruto do pomar inesgotável

                configurado nas mãos de todos os que amam.

 

Até que eu desapareça não te movas

dos vidros que dentro de momentos serão intransponíveis.

 

Deixa que te fixe um gesto que não mude

              e me acompanhe

              e me confunda

              entre o estar presente e a ausência.

 

Agora

agora meu Amor

que se iniciam os passos da distância

podes chorar

ficar tranquilamente

                                   olhando o mar

porque só partem

              os guerrilheiros

              que amam a terra

                                   totalmente

                      a possuem

                             e engravidam

                                     com o próprio sangue.

 

 

© Blog da Rua Nove

12.11.21

Arlindo Barbeitos - Angola, Angolê, Angolema


blogdaruanove

 

Arlindo Barbeitos (1940-2021), Angola, Angolê, Angolema (1976; presente edição, segunda, 1977).

Capa e ilustração de Sebastião Rodrigues (1929-1997).

 

Arlindo Barbeitos é o primeiro escritor com uma primeira obra publicada depois de 1974 que aqui se apresenta. Justifica-se tal opção por três razões – por um lado, muitos destes seus poemas foram escritos nas décadas de 1960 e 1970, antes do 25 de Abril, reflectindo um contexto anterior ao da independência de Angola; por outro lado, o seu primeiro livro, este, foi publicado ainda em Portugal, pela Sá da Costa; finalmente, a terceira razão prende-se com uma afirmação do próprio autor, registada na entrevista que introduz esta obra – " Transmito a minha poesia numa língua que não posso esquecer, é a língua colonial, mas que não deve ser a única língua a ser falada pelo povo angolano. Seria um massacre cultural horrível. Essa língua continua sendo ainda uma língua de estrangeiro em Angola. Então, já que aqui eu sou um ignorante, não conheço as línguas de Angola o suficiente, tento pelo menos, dando um conteúdo nosso, africanizar a língua colonial. Aliás, o próprio povo já o fez e o poeta, finalmente, segue-o. As línguas africanas foram capazes de uma poesia oral belíssima, porque não seriam elas capazes de uma poesia escrita belíssima também? Simplesmente os poetas é que não foram capazes, e o povo angolano não deve sequecer isso. "

 

De facto, não só a poesia do autor é belíssima como não poderia ser, no seu íntimo, mais africana. Militante da oposição política e armada ao regime colonial do Estado Novo, Arlindo Barbeitos não necessita de, a exemplo de outro militante da resistência armada, Costa Andrade (1936-2009), transformar a sua poesia num manifesto político explícito para lhe dar africanidade ou materializar a resistência ao colonialismo, que tanto coexiste subtilmente como explicitamente em alguns dos seus registos líricos.

 

Paradigma pleonástico da poesia enquanto poética, a sua obra ora assenta em modelos orientais, minimalistas e quase anafóricos, da poesia, ora em poemas onde a explícita crítica à realidade colonial se materializa na encadeada e desconcertante simplicidade do quotidiano.

 

Poeticamente, a sua resistência e sua angolanidade traduzem-se ainda, no título deste volume, na evocação da oralidade que a palavra "angolê" transmite e na inovação lexical do neologismo "angolema", que tanto sugere ser Angola um poema, como o poema, a sua poesia, ser Angola.

 

Deste volume transcrevem-se quatro poemas, com distintas características, pela sua ordem de publicação:

 

"amada

minha amada

a revolução

não é um conto

uma borboleta

não é um elefante

 

como agarrá-lo

 

devagarinho

o menino ia comendo o peixe frito

assim como quem toca gaita-de-beiço"

 

 

"à sombra da árvore velha de muitos sobas

só cresceram muxitos

 

o sussurrar encarcoleante dos surucucus d'areia

marcava dédalos efémeros

que os quissondes iam devorando

 

à sombra da árvore velha de muitos sobas

só cresceram muxitos"

 

 

"eu quero escrever coisas verdes

verdes

como as folhas desta floresta molhada

verdes

como teus olhos

que só a saudade deixa ver

verdes

como a menina duma trança só

que soletra em português sa-po sa-po

verdes

como a cobra esguia que me surpreendeu

naquela cubata sem outra história

verdes

como a manhã azul

que acaba de nascer

 

eu quero escrever coisas verdes"

 

 

"o Inácio cambuta

que vendia lotaria na Maianga

ficou assim

porque um dia quando a jogar à bilha

um rapaz de Maculusso

lhe passou a perna pela cabeça e fugiu

 

o camoquengue Camões 

que varria o chão na loja do Sidónio

ficou assim

porque um dia quando atrás das piteiras

um sapo preto

lhe mijou no olho direito

 

o André matumbo

que era contínuo na Fazenda

ficou assim

porque um dia quando na sanzala do Botomona

comeu laranja roubada com casca e tudo

 

o Luís molumba

que vadiava por todo o musseque

ficou assim

porque um dia não acreditou que o sipaio

seu primo

lhe ia dar uma bordoada com o pau do ofício"

 

© Blog da Rua Nove

26.10.21

Castro Soromenho - A Chaga


blogdaruanove

 

Castro Soromenho (1910-1968), A Chaga (1970 [1964]; presente edição, terceira, 1985).

 

Embora o manuscrito seja datado de 1964, esta obra de Castro Soromenho apenas foi publicada postumamente. A primeira edição surgiu no Brasil (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970), a segunda em Portugal (Lisboa: Sá da Costa, 1979) e esta, a terceira, em Angola (Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1985).

 

A curiosidade desta terceira edição é que, efectivamente, foi impressa na República de Cuba, pelas Ediciones Cubanas, para a União dos Escritores Angolanos, no período de intervenção cubana em Angola, de apoio ao Movimento Popular de Libertação de Angola, que decorreu entre 1975 e 1991.

 

Recorrendo sempre às memórias que guardou de África, de onde saíu com menos de trinta anos, à vivência governativa de seu pai e à sua própria experiência administrativa, e até como recrutador de mão de obra, Castro Soromenho evoca aqui a herança negreira, que se prolongou até ao século XIX e ainda ecoava nalgumas práticas do século XX, denunciando os abusos e desvios de certos funcionários coloniais perpetrados a coberto dos seus cargos administrativos.

 

Contudo, o autor não deixa de abordar o antagonismo e as divergências existentes entre várias etnias, apontando essa como uma das razões para a administração portuguesa colocar lundas nos cargos de  sipaios e capitas a controlar grupos de quiocos. Nesta sua habitual digressão pela caracterização étnica, coloca ainda os bangalas de permeio, como sendo aqueles que têm um certo sentido poético e ouvido musical.

 

Metaforicamente, as duas povoações com um só nome – Camaxilo, desdobram-se em muitas mais, pois, para além das povoações dos brancos e dos negros, existem dentro delas ainda outras "povoações", como a dos colonos e a da administração, a dos sipaios e capitas e a dos prisioneiros, a dos lundas e quiocos, ou a dos mestiços. A questão da mestiçagem, como decorrente de uma situação de facto mas não de jure, formalizada ou legalizada através do casamento entre brancos e negras, serve ainda para tratar frontalmente o racismo e o hipócrita relacionamento colonial entre raças.

 

Transcrevem-se de seguida os  primeiros parágrafos deste romance:

 

"As árvores estavam mergulhadas no nevoeiro e das frondes pesadas do orvalho da madrugada tombava uma chuva miudinha que fazia tiritar os homens que marchavam, em longa fila indiana, no vale de Camaxilo, para chegarem às suas terras altas antes de o cabo de sipaios apagar a fogueira do terreiro onde se apruma o pau da  bandeira.

A mão calosa de Gunga estendeu-se sobre o braseiro que restava da noite, os dedos megulharam rapidamente na cinza e como tenaz truxeram uma brasa, logo solta na palma da mão e rolada para a boca do cachimbo de água. Com sofreguidão puxou uma fumaça, uma nuvem de fumo envolveu-lhe a cara talhada de rugas, piscou os olhos raiados de sangue e atirou-se para a frente sacudido por forte ataque de tosse. Escarrou para o chão e quedou-se acocorado com a mutopa fumegante nas mãos a olhar para o vale ravinado a seus pés e esbeiçado no outro lado numa encosta suave a rasar-se à beira da povoação dos colonos. As cinco casas dos comerciantes, com grandes quintais defendidos dos matagais e da surtida da onça por fortes paliçadas, recortavam-se na luz do amanhecer na orla da planície de largos horizontes azuis para as bandas de Caungula.

Gunga acabava de enxergar o vulto, alto e esguio, do velho colono Lourenço, encostado a um pilar da varanda da sua casa de adobe, à beira da estrada que talha a planície, atravessa o povoado de colonos e, sombreada pela floresta de acácias vermelhas, desce numa curva à garganta do vale para através da ponte de madeira se prolongar em rampa até à povoação dos funcionários. Duas povoações e um só nome – Camaxilo.

Todas as manhãs, o velho Lourenço está ali na varanda a fumar o seu primeiro cachimbo, olhando para Camaxilo de cima onde, à volta do terreiro centrado pelo pau da bandeira e por uma mangueira de grande copa, branquejam os edifícios da Administração e residências dos funcionários. A gente do governo, civis fardados, alcandorara-se no alto do vale, com vista rasgada sobre a povoação de baixo, as lojas dos colonos a olho nu.

Entre o negro velho e o colono velho abre-se o vale, o rio Camaxilo ao fundo, o primeiro postado no alto das ravinas, o outro lá embaixo na lomba da encosta, à boca da planície. Ali estão há um ror de anos sob o mesmo céu ardente e sobre a terra perfumada de acácias."

 

© Blog da Rua Nove

07.07.21

António Mendes Correia - Contos e Novelas Angolanos


blogdaruanove

 

António Mendes Correia (1906-1982), Contos e Novelas Angolanos (1955).

 

Este livro apresenta sete contos e novelas – Um Caso de Consciência, A Nossa Terra é o «Huambo», Sonho Realizado, A Vingança da Morta, Um Fantástico Quissange, Condenados de Angola e Os Últimos Abencerragens.

 

Uma anotação à página de título de A Nossa Terra é o «Huambo» refere que este texto foi galardoado com o segundo prémio do Concurso Literário promovido pelo Município de Nova Lisboa, no ano de 1950, e uma anotação à página de título de Sonho Realizado refere que o texto foi galardoado com o primeiro prémio do Concurso Literário promovido pela Associação dos Naturais de Angola, no ano de 1951.

 

O volume abre com umas "Palavras Prévias" do autor que, ao longo de cinco páginas, discorre sobre a distinção entre conto, novela e romance, citando de permeio, e a esse propósito, a autoridade do escritor inglês E. M. Forster (1879-1970) e do crítico e teórico literário alemão Wolfgang Kayser [grafado Keyser, no texto) (1906-1960).

 

As sete narrativas, quiçá involuntariamente, não deixam de oscilar entre uma visão colonial etnocêntrica e uma visão paternalista ou crítica dos costumes gentílicos. Os conceitos subjacentes aos diversos enredos sofrem, por vezes, algum desequilíbrio na transposição para as formas narrativas adoptadas, dando talvez razão ao que o autor já anotara nas suas palavras prévias – "Mas... de almas cheias de boas intenções está o Inferno cheio. E será esse, certamente, o destino da do autor destes «Contos e Novelas», porque vai grande distância entre o saber, teòricamente [sic], como as coisas se fazem, e fazê-las, na realidade."

 

A Biblioteca Nacional de Portugal regista uma reedição desta obra, ocorrida no ano 2000, como sendo a primeira edição da mesma, não apresentando registo para este volume de 1955 da Coimbra Editora.

 

Do conto Os Últimos Abencerragens transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Perante este espectáculo inesperado, Cavango ficou paralizado. De pé, ao lado da velha escrava, observava-lhe o ritmo lento da respiração, ao mesmo tempo que cofiava, apreensivo, a barbicha já grisalha. Depois de uns momentos de hesitação, debruçou-se sobre ela, tirou da bainha de madeira um longo punhal que nunca o abandonava e cortou com ele uma tira de couro de gazela, com a qual lhe envolveu o braço e estancou o sangue. Agachando-se em seguida, transpôs a baixa e estreita porta da cubata e foi buscar à sua residência uma cabaça de «marufo». À força, introduziu, entre os dentes cerrados da velha escrava, o gargalo da cabaça, fazendo-lhe ingerir alguns goles da «marufo». Depois, acocorado ao lado dela aguardou a reacção provocada pelo líquido. Alguns minutos depois, a velha, virou lentamente a cabeça para a direita e descerrou um pouco as pálpebras. Os seus olhos mortiços de cão humilde, negros e liquefeitos, fitaram Cavango docemente, articulando num cicio, num sopro quase imperceptível:

 

– Num mata meu neta... o teu filho tá agora na barriga dela... porque nunca pôde estar no meu barriga...

 

Deixou cair de novo as pálpebras. E alguns minutos depois, pendeu-lhe a cabeça mais para a direita ainda, e numa inspiração profunda soltou o último suspiro.

 

Cavango manteve ainda, durante algum tempo a neta da escrava mucuísse. E quando, ao fim de nove meses, deu à luz um rapaz cheio de vida, a que Cavango  quis pôr o nome de Kilela, fez desaparecer a mãe.

 

Dizia-se na tribo, muito em segredo, que fora vendida aos mutchilengues; mas outros afirmavam convictos que tinha sido enterrada viva."

 

© Blog da Rua Nove