22.12.24
Domingos van-Dúnem - Auto de Natal
blogdaruanove
Domingos van-Dúnem (1925-2003), Auto de Natal (1972).
Ilustração da capa com desenho de António Trindade (datas desconhecidas)
Esta obra, que recebeu o prémio Óscar Ribas, havia sido antecedida pela publicação de A Praga (texto que surgiu em 1947, no jornal Diário de Luanda), sendo seguida de Uma História Singular (1975), Milonga (1985), Dibundu (1988), Kuluka (1988) e Panfleto (1988). Nesta edição anuncia-se também a futura publicação de uma peça inédita, datada de 1967, intitulada Kioxinda, sobre a qual não foi possível encontrar qualquer outra referência.
Durante o período colonial, Domingos van-Dúnem foi ainda fundador da revista Mensagem, associada à geração de 50, e exerceu intensa actividade política contestando o regime, o que o levou a ser preso, em 1961, na Baía dos Tigres.
Depois da independência, assumiu o cargo de director da Biblioteca Nacional de Angola e foi representante permanente de Angola na sede da UNESCO, em Paris, entre 1982 e 2002.
Esta peça teatral, de acto único, prefaciada pelo "Reverendo Padre Dr. Alexandre do Nascimento [futuro cardeal, 1925-2024]", surpreende pela inovação associada à temática católica que se desenvolve numa realidade simultaneamente europeia e africana – "[didascália introdutória] Música - Noite Silenciosa / Música Africana - Rufar de Tambores / Música - Noite Silenciosa" e pelo facto de surgir numa edição bilingue, contemplando o kimbundu, em versão de Maurício Caetano (datas desconhecidas), que sublinha a dimensão africana da sua génese.
Nesta edição reproduzem-se quatro fotografias em extra-texto, alusivas a uma das representações da peça, sobre a qual declarou D. Alexandre do Nascimento, no prefácio – " O Autor desta breve mas enternecedora, válida e digna peça, Artista que é, convidou quem ele bem entendeu. Bateu-me à porta, para à boa maneira de antigamente eu dar o sal do baptismo à criança, que lhe acabara de nascer, para o teatro nestas nossas terras. / Bem, acabar de nascer é força de expressão. Porque o meu caro Domingos van-Dúnem, cujo catolicismo não me parece progressista, continua nisto com as mazelas de muito cristão-velho: a criança só se baptiza quando já... gatinha. A peça que vem receber o sal do baptizo já apareceu três vezes a público. Como no teatro europeu, esta peça que algo tem de inicial, de ponto de partida, também nasceu junto da Igreja: é um prolóquio aos dramas transcendentes da Fé."
O prefaciador termina a sua apreciação com uma nota inusitada, que acentua não só a sua peculiar visão católica como a peculiaridade africana com que os ritos, da quadra religiosa que é o Natal, se abordam nesta obra – " Meu caro van-Dúnem: obrigado pela alegria intensa que me veio da leitura do seu auto. Será um benefício real que às latas de conserva do teatro que se serve habitualmente se possa juntar o sabor do gingibre e do diquezo."
Tudo isto sublinha os traços culturais e etnológicos subjacentes a este auto de Natal, através da metamorfose dos quais o autor traduz uma experiência ecumenicamene africana.
Deste breve auto, que se desenvolve ao longo de apenas nove páginas, transcreve-se uma passagem da banal vivência quotidiana, supersticiosa e algo animista, que antecede o nascimento do "MENINO":
"ESPOSA (mãe dos gémeos)
Bom dia, Papá Zuze!
JOSÉ
Eh... Bom dia Mana! E vocês na vossa casa e no vosso corpo estão a passar bem?!... Ma...ri...a! Nos chegaram visitas!
(Responde do interior do quarto)
MARIA
Eh... O que é, Nga Zuze? Já vou sair.
... Nos chegaram visitas ?!...Quem é então?!... Vou mesmo já sair...
(Lavradores, pescadores, gente de trabalho, passa à porta de José e saúda o casal. O pai dos gémeos dirige-se a José).
PAI DOS GÉMEOS
Em casa estamos a passar assim assim... Já sabe, Papá, nunca falta em casa desgraça (Expressão de fatalismo).
MÃE DOS GÉMEOS
Ainda ontem o lobo nos comeu uma cabra que estava a dormir no curral muito bem...
PAI DOS GÉMEOS
Uma cabra que estava no seu estado interessante...
(Maria, surge, compondo as vestes e saúda).
MARIA
Oh!... É a minha amiguinha Cabaça, afinal?!...Vê só... E eu não sabia...
(Cabaça vai ao encontro de Maria que pergunta)
MARIA
E teu irmão, Caculo? Ainda está a atirar as pedras nas galinhas e a partir os ovos?
(Caculo, cabisbaixo, envergonhado, acolhe-se aos pais)
MÃE DOS GÉMEOS
Não, Mamã Maria!... Agora já tem mesmo juízo. Eh!... desde aquele dia mesmo que a Mamã lhe falou...
MARIA
Eu estava no quarto mas parece que ouvi como o lobo comeu vossa cabra que estava a dormir no curral... Mas, então, o curral não está bem tapado?...
PAI DOS GÉMEOS
Está mesmo, Mamã Maria!... A gente não sabe o que vai fazer... Parece mesmo que é um vizinho que está nos fazer só mal... Bom, suspeita, é mesmo pecado; mas parece mesmo que é uma velha Kafika... Eh!... É ela mesmo que nos está fazer mal... (dando provas) Quando passa no pé do curral morre uma cabra ou então temos só azar sem fazer nada...
JOSÉ
Qual quê, filha? Uma pessoa não deve pensar só como outra não é boa pessoa. Vamos, então, ainda pensar: qual é a força e o poder que tem a Kafika para fazer mal aos outros?!...
PAI DOS GÉMEOS
Eh, Papá Zuze... Aquela Kafika é uma cobra... Olha só: eu no dia, no dia que passou o sucedo da cabra, eu mesmo, sonhei que ela me tinha pedido uma filha de cabra que ainda não tinha nascido... Já viu, Papá?!
MARIA
Mas então, se é mesmo a Kafika que fez a confusão vamos fazer o quê mais para ela amanhã não fazer mais confusão!?... Vamos rezar para o nosso Pai que está no Céu tirar o coração mau que ela tem..."
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