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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

12.06.25

Revista Cultura (VII)


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Este número 9, publicado em 1957, apresenta poemas de autores associados a Angola, Emílio [Machado] da Costa Rosa (1932-1998), Cabo Verde, Manuel Lopes (1907-2005) e Moçambique, F. A. Barradas (datas desconhecidas), que haviam sido anteriormente publicados no Boletim Cabo Verde e na revista ELO (Moçambique).

 

Curiosamente, embora Emílio da Costa Rosa, que assina o poema Para uma tarde de neve, tenha nascido em Angola, foi em Moçambique que desenvolveu parte da sua carreira profissional, quer como magistrado quer como advogado, depois de ter passado pelo Colégio de S. Luiz, em Espinho, onde completou a Instrução Primária e fez o curso do Liceu, e pela Faculdade de Direito, em Lisboa.

 

F. A. Barradas, que assina Meus tristes poemas, não aparece mencionado em muitas fontes, embora o seu nome surja na revista Pela Patria, publicação mensal da comunidade portuguesa de Xangai, também relacionada com Macau, que foi editada nos anos de 1940 e 1941.

 

Embora já se tenham apresentado aqui passagens de outros trabalhos do consagrado Manuel Lopes, quer em verso quer em prosa, transcreve-se agora mais um poema do autor, um olhar claridoso sobre a emigração que ainda hoje caracteriza a realidade de Cabo Verde:

 

Poema de quem ficou

 

Eu não te quero mal

por este orgulho que tu trazes,

por este ar de triunfo iluminado

com que voltas...

 

... O mundo não é maior

que uma pupila dos teus olhos:

tem a grandeza

das tuas inquietações e das tuas revoltas.

 

...Que teu irmão que ficou

sonhou coisas maiores ainda,

mais belas que aquelas que conheceste...

Crispou as mãos à beira-mar

e teve saudades estranhas, de terras estranhas,

com bosques, com rios, com outras montanhas,

– bosques de névoa, rios de prata, montanhas de ouro –

que nunca viram teus olhos

no mundo que percorreste...

 

© Blog da Rua Nove

13.02.25

Ernesto Lara Filho - Seripipi na Gaiola


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Ernesto Lara Filho (1932-1977), Seripipi na Gaiola (1970).

 

Até esta data, o autor havia publicado dois "cadernos de poesia" intitulados Picada de Marimbondo (1961; esgotado) e O canto de Matrindinde (1963; retirado de circulação), afirmando a propósito da publicação deste terceiro caderno que é o volume "com que pensa encerrar a sua primeira trilogia de poesia".

 

Também a propósito dos títulos das sua obras declarou Ernesto Lara Filho – "A angolanidade implícita e explícita da minha poesia pode divisar-se até nos títulos dos três livros publicados e já não pode ser discutida. / É hoje uma afirmação e vem de longe, desde que em 1959 fui incluído na primeira Antologia de poesia angolana editada em Lisboa pela Casa dos Estudantes do Império."

 

De facto, o poeta, que veio a falecer num acidente de viação, acabou por não publicar mais nenhum livro de poesia, estando a sua obra compilada em diversas antologias, como Antologia de Poesia Angolana (1959), Poetas Angolanos (1962), O Corpo da Pátria - Antologia Poética da Guerra do Ultramar, 1961-1971 (1971), Poesia Angolana de Revolta (1975), Antologia da Poesia Pré-Angolana (1976), No Reino de Caliban. Antologia Panorâmica da Poesia Africana de Expressão Portuguesa (1976).

 

Ernesto Lara, como se assinala na badana deste volume, foi redactor do "ABC" de Luanda, colaborando ainda, através de crónicas e reportagens, com outras publicações como ABC - Diário de Angola, O Comércio, Diário de Luanda e Notícia. Para além de poeta, era reconhecido como notável cronista, tendo algumas das suas crónicas sido reunidas no volume póstumo Crónicas da Roda Gigante (1990).

 

Ernesto Lara Filho, angolano, boémio, irmão da poetisa Alda Lara, jornalista, poeta contestário até ao fim da sua vida, preso político e regente agrícola (Coimbra, 1952), é, obviamente, o autor da letra da célebre canção Seripipi de Benguela, musicada em 1980 por Carlos Mendes (n. 1947), que abaixo se reproduz.

 

Pelo que estas indiciam da sua biografia, transcrevem-se na íntegra as três dedicatórias que antecedem três epígrafes e uma nota de introdução à obra– "Para a Maria do Céu  / Aos boémios que comigo patrulharam as noites de Luanda – estrelas algumas já mortas das rondas dessas madrugadas. / Aos pintores Roberto Silva, Mário de Araújo, Alípio Brandão, Albano Neves e Sousa e Albano Neves e Sousa (Filho)."

 

Por ordem de apresentação no volume, transcrevem-se de seguida quatro poemas do autor:

 

"SERIPIPI DE BENGUELA [Publicado  no "ABC", Luanda, 1961]

 

Eh! Seripipi de Benguela

escuta aquela canção.

 

Parece pardal de Luanda

cantando na escuridão.

 

Levanta voo, seripipi

do galho desta prisão.

 

Leva no bico uma esperança

ao ninho do teu irmão.

 

O CANTO DA LIBERDADE [Paris, Agosto de 1962]

 

Eh passarada bravia

seripipi fugiu da gaiola

 

Ouve-se vibrante no mato

o canto da libertação

 

Esperança passarada

no seripipi vosso irmão

 

Ele vai voltar p'ra quebrar

as grades dessa prisão.

 

NA NOITE DOS CAZUMBIS [Roçadas, Maio de 1967]

 

As cubatas de Himane arderam ontem

foi a grande queimada que Calupéte atiçou

no capim velho

amanhã nascerá das cinzas o capim novo

com que apascentaremos o gado.

 

Himane reconstruirá o seu quibolo

na encosta da montanha de Sámuei

bem longe da estrada

perto das sombras grandes da floresta

lá onde passam regatos tranquilos

os passarinhos cantam

e a madeira e os frutos silvestres abundam.

 

N'Dove canta debruçada sobre a lavra

os seiso pendem-lhe flácidos sobre a terra estrumada

pelo seu suor

o filho chora junto da cabça de milho

a terra está molhada das primeiras chuvas

o milho está pronto para cair nas lavras

que N'Dove preparou.

 

Este ano vais ser um ano de grande para o Povo N'Dumbe.

 

Na Vila

o senhor Administrador já está a cobrar os impostos

já mandou o cipaio Tembo avisar os sobas

Gunga foi no contrato

foi para as fazendas de sisal da ganda

os filhos ficaram com a irmã mais velha

os bois foram vendidos e a lavra abandonada.

 

Amanhã

Himane recomeçará a cosntruir as cubatas incendiadas

isto se não for para a cidade

ser servente de pedreiro

lá nessa cidade onde se constroiem [sic] as casas de cinzento armado

a tocar as nuvens do céu

lá nessa cidade de que falou o primo N'Zimbi

lá onde as luzes apagam as escuridões

povoadas de cazumbis

lá onde as queimadas não aparecem

alterando os ciclos e as estações.

 

HUMORISMO [Sá da Bandeira, Outubro de 1967]

 

Tenho trinta e sete anos.

 

Já conheci a prisão

o exílio e o hospital...

 

Como atraso de vida

não está mal, nada mal..."

 

© Blog da Rua Nove

22.12.24

Domingos van-Dúnem - Auto de Natal


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Domingos van-Dúnem (1925-2003), Auto de Natal (1972).

Ilustração da capa com desenho de António Trindade (datas desconhecidas)

 

Esta obra, que recebeu o prémio Óscar Ribas, havia sido antecedida pela publicação de A Praga (texto que surgiu em 1947, no jornal Diário de Luanda), sendo seguida de Uma História Singular (1975), Milonga (1985), Dibundu (1988), Kuluka (1988) e Panfleto (1988). Nesta edição anuncia-se também a futura publicação de uma peça inédita, datada de 1967, intitulada Kioxinda, sobre a qual não foi possível encontrar qualquer outra referência.

 

Durante o período colonial, Domingos van-Dúnem foi ainda fundador da revista Mensagem, associada à geração de 50, e exerceu intensa actividade política contestando o regime, o que o levou a ser preso, em 1961, na Baía dos Tigres.

 

Depois da independência, assumiu o cargo de director da Biblioteca Nacional de Angola e foi representante permanente de Angola na sede da UNESCO, em Paris, entre 1982 e 2002.

 

Esta peça teatral, de acto único, prefaciada pelo "Reverendo Padre Dr. Alexandre do Nascimento [futuro cardeal, 1925-2024]", surpreende pela inovação associada à temática católica que se desenvolve numa realidade simultaneamente europeia e africana – "[didascália introdutória] Música - Noite Silenciosa / Música Africana - Rufar de Tambores / Música - Noite Silenciosa" e pelo facto de surgir numa edição bilingue, contemplando o kimbundu, em versão de Maurício Caetano (datas desconhecidas), que sublinha a dimensão africana da sua génese.

 

Nesta edição reproduzem-se quatro fotografias em extra-texto, alusivas a uma das representações da peça, sobre a qual declarou D. Alexandre do Nascimento, no prefácio – " O Autor desta breve mas enternecedora, válida e digna peça, Artista que é, convidou quem ele bem entendeu. Bateu-me à porta, para à boa maneira de antigamente eu dar o sal do baptismo à criança, que lhe acabara de nascer, para o teatro nestas nossas terras. / Bem, acabar de nascer é força de expressão. Porque o meu caro Domingos van-Dúnem, cujo catolicismo não me parece progressista, continua nisto com as mazelas de muito cristão-velho: a criança só se baptiza quando já... gatinha. A peça que vem receber o sal do baptizo já apareceu três vezes a público. Como no teatro europeu, esta peça que algo tem de inicial, de ponto de partida, também nasceu junto da Igreja: é um prolóquio aos dramas transcendentes da Fé."

 

O prefaciador termina a sua apreciação com uma nota inusitada, que acentua não só a sua peculiar visão católica como a peculiaridade africana com que os ritos, da quadra religiosa que é o Natal, se abordam nesta obra – " Meu caro van-Dúnem: obrigado pela alegria intensa que me veio da leitura do seu auto. Será um benefício real que às latas de conserva do teatro que se serve habitualmente se possa juntar o sabor do gingibre e do diquezo."

 

Tudo isto sublinha os traços culturais e etnológicos subjacentes a este auto de Natal, através da metamorfose dos quais o autor traduz uma experiência ecumenicamene africana.

 

Deste breve auto, que se desenvolve ao longo de apenas nove páginas, transcreve-se uma passagem da banal vivência quotidiana, supersticiosa e algo animista, que antecede o nascimento do "MENINO":

 

"ESPOSA (mãe dos gémeos)

Bom dia, Papá Zuze!

JOSÉ 

Eh... Bom dia Mana! E vocês na vossa casa e no vosso corpo estão a passar bem?!... Ma...ri...a! Nos chegaram visitas!

(Responde do interior do quarto)

MARIA

Eh... O que é, Nga Zuze? Já vou sair.

... Nos chegaram visitas ?!...Quem é então?!... Vou  mesmo já sair...

(Lavradores, pescadores, gente de trabalho, passa à porta de José e saúda o casal. O pai dos gémeos dirige-se a José).

PAI DOS GÉMEOS

Em casa estamos a passar assim assim... Já sabe, Papá, nunca falta em casa desgraça (Expressão de fatalismo).

MÃE DOS GÉMEOS

Ainda ontem o lobo nos comeu uma cabra que estava a dormir no curral muito bem...

PAI DOS GÉMEOS

Uma  cabra que estava no seu estado interessante...

(Maria, surge, compondo as vestes e saúda).

MARIA

Oh!... É a minha amiguinha Cabaça, afinal?!...Vê só... E eu não sabia...

(Cabaça vai ao encontro de Maria que pergunta)

MARIA

E teu irmão, Caculo? Ainda está a atirar as pedras nas galinhas e a partir os ovos?

(Caculo, cabisbaixo, envergonhado, acolhe-se aos pais)

MÃE DOS GÉMEOS

Não, Mamã Maria!... Agora já tem mesmo juízo. Eh!... desde aquele dia mesmo que a Mamã lhe falou...

MARIA

Eu estava no quarto mas parece que ouvi como o lobo comeu vossa cabra que estava a dormir no curral... Mas, então, o curral não está bem tapado?...

PAI DOS GÉMEOS

Está mesmo, Mamã Maria!... A gente não sabe o que vai fazer... Parece mesmo que é um vizinho que está nos fazer só mal... Bom, suspeita, é mesmo pecado; mas parece mesmo que é uma velha Kafika... Eh!... É ela mesmo que nos está fazer mal... (dando provas) Quando passa no pé do curral morre uma cabra ou então temos só azar sem fazer nada...

JOSÉ

Qual quê, filha? Uma pessoa não deve pensar só como outra não é boa pessoa. Vamos, então, ainda pensar: qual é a força e o poder que tem a Kafika para fazer mal aos outros?!...

PAI DOS GÉMEOS

Eh, Papá Zuze... Aquela Kafika é uma cobra... Olha só: eu no dia, no dia que passou o sucedo da cabra, eu mesmo, sonhei que ela me tinha pedido uma filha de cabra que ainda não tinha nascido... Já viu, Papá?!

MARIA

Mas então, se é mesmo a Kafika que fez a confusão vamos fazer o quê mais para ela amanhã não fazer mais confusão!?... Vamos rezar para o nosso Pai que está no Céu tirar o coração mau que ela tem..."

 

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12.06.24

poesias de m. antónio


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Mário António (Mário António Fernandes de Oliveira, 1934-1989), poesias de m. antónio (1956).

Capa de Israel de Macedo (datas desconhecidas).

 

Consagrado poeta, natural de Maquela do Zombo, fez os estudos liceais em Luanda, para onde a sua família se havia mudado entretanto, publicando as suas primeiras poesias ainda enquanto estudante liceal.

 

As suas actividades políticas levaram-no a estar próximo do Partido Comunista Angolano e do Movimento Popular de Libertação de Angola. A partir de 1963 passou a residir definitivamente em Portugal, estando ligado à Casa dos Estudantes do Império e às actividades dos movimentos de libertação ali desenvolvidas. No mesmo ano foi galardoado com o prémio Ocidente para poesia, do Secretariado Nacional de Informação, galardão que, na área do ensaio, foi também atribuído ao professor universitário Torcato de Sousa Soares (1903-1988).

 

Apesar das ligações do autor aos movimentos independentistas, Marcello Caetano (1906-1980), que haveria de suceder a António de Oliveira Salazar (1889-1970) como Presidente do Conselho de Ministros, pronunciou-se assim, em carta datada de 2 de Março de 1965, sobre a obra ficcional de Mário António:

 

"Já conhecia o poeta, o ensaísta, não me fora dado apreciar o prosador de ficção. Claro que o ser poeta é uma condição: e essa condição transluz na própria prosa. Mas neste livro [Crónica da Cidade Estranha, referido aqui: M. António - Crónica da Cidade Estranha - Literatura Colonial Portuguesa (sapo.pt)], embora nos olhos de quem viu haja sempre sonho, a realidade aparece na crueza da observação. E que admirável linguagem! Como a vida dessa Luanda negra e mestiça que eu ainda conheci a impor-se na cidade mal definida dos anos 30 tem no Mário António um contista fiel, amoroso e eloquente! Eloquência sem retórica, a eloquência da vida, dessa vida que nos faz conviver com as figuras evocadas, sentir as suas dores, partilhar dos seus anseios, inquietar-nos com as suas inquietações, entristecer-nos com os seus desalentos e vibrar com as suas alegrias!

Estranho que ao seu livro não tenha ainda a crítica dado todo o valor que ele tem como documento e como obra de arte. Eu considero-o um dos mais notáveis casos literários relativos à crise de transição por que passam os africanos."

 

Naquele mesmo ano de 1965, em carta datada de 7 de Junho, afirmou Roger Bastide (1898-1974) sobre o referido livro: "Votre livre m'apporte une autre Afrique que celle du folklore ou celle de la révolte - une troisième Afrique, qui a gardé toute la poesie de la première (mais maintenant une poésie intérieure) et toute l'amertume de la seconde (mais maintenant un simple goût de cendre dans la bouche et dans la bouche et dans le coeur)."

 

Depois do primeiro volume aqui destacado, e até 1974, publicou as seguintes obras em verso - Amor (1960), Poemas & Canto Miúdo (1960), Chingufo, Poemas Angolanos (1961), prémio Camilo Pessanha de 1961, 100 Poemas (1963), prémio Ocidente / Poesia de 1963, Mahezu (1966), Era Tempo de Poesia (1966), Rosto de Europa (1968), Coração Transplantado (1970).

 

Em prosa publicou também, até 1974, Gente para Romance: Álvaro, Lígia, António (1961), Crónica da Cidade Estranha (1964), Farra de Fim-de-Semana (1965), e Luanda - Ilha Crioula (1968).

 

Várias outras obras publicou depois de 1974, inclusive na área dos ensaios e estudos académicos, uma vez que se doutorou em estudos Portugueses no ano de 1987. Na sequência deste percurso, foi professor de Literatura Africana de Expressão Portuguesa, na Universidade Nova de Lisboa, e presidente da Secção de Literatura da Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi ainda Director dos Serviços para a Cooperação com os Novos Estados Africanos da Fundação Calouste Gulbenkian.

 

Antes de publicar este primeiro volume de versos, havia colaborado, em 1952, nas revistas Távola Redonda, de Lisboa, e Mensagem, de Luanda, onde a sua poesia foi divulgada, escrevendo nesse mesmo ano o famoso poema Canto de Farra, posteriormente musicado, cantado e gravado (1975) por Ruy Mingas (1939-2024), com o título Poema da Farra.

 

Segundo a Fundação Calouste Gulbenkian, recebeu ainda, a título póstumo, o prémio Camões (embora o seu nome não conste da lista oficial de galardoados). A mesma Fundação instituíu, em 2001, um prémio literário com o nome de Mário António, que foi atribuído, nessa sua primeira edição, a Mia Couto (n. 1955), pelo romance O Último Voo do Flamingo (2000).

 

Neste volume publicam-se dezanove poemas, escritos entre 21 de Outubro de 1951 e 8 de Setembro de 1954, que, explicitamente, ora evocam memórias de infância ora transmitem impressões amorosas. De uma forma mais velada, outras ideias e situações se transmitem, como no poema que abaixo se transcreve:

 

"O AMOR E O FUTURO

 

Calar

esta linguagem velha que não entendes

(Tu és naturalmente de amanhã

como a árvore florida)

e falar-te na linguagem nova do futuro

engrinaldada de flores.

 

Calar

esta saudade velha

e a nostalgia herdada dos brancos marinheiros

e de escravos negros

de noite sonhando lua

nos porões dos negreiros.

 

Calar 

todo este choro antigo

hoje disfarçado em slow, bolero e blue

(Teu sentimento

e esta pressão dorida que não mente:

teus seios contra o meu peito

a tua mão na minha

o calor das tuas coxas

e os teus olhos ardentes...)

 

Calar tudo isso

(Tu és naturalmente do futuro

como a árvore florida)

e ensaiar o canto novo

da esperança a realizar

Cantar-te

árvore

espera de fruto

ante-manhã

 

Nascer do sol em  minha vida."

 

© Blog da Rua Nove

25.04.24

Kitatu Mu'Lungo


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Kitatu Mu'Lungo (1974).

 

Até esta data, David Mestre (n. 1948) publicara o livro de poesia Crónica do Ghetto (1973), sendo também coordenador e editor dos cadernos de poesia Bantu e Kuzuela, João Carneiro (n. 1947) publicara o livro de poesia Dezanove Recontos (1968) e Maria Ângela Pires (n. 1944) havia publicado Poemas (1968), em edição de autora.

 

Opúsculo singular de vozes singulares do período decorrido entre a Revolução de 25 de Abril de 1974 e a independência de Angola, declarada a 11 de Novembro de 1975, congrega, ao longo das suas 56 páginas, textos onde, por entre a opressão, a esperança cintila nas palavras de David Mestre  "Porém / um dia pedir-te-ei gajajas e goiabas e fa- / remos um almoço de frutos que te hão-de es- / corregar do vestido e crescer-me nos pés / e cheios de alegria e liberdade abriremos / uma estrada / plantaremos uma árvore / não escreveremos um livro / mas faremos uma nação.", um desencanto anárquico e irónico perpassa pelo escatológico, sexualizado e quase violento registo de João Carneiro e uma inquieta incerteza toma voz na cidade de Maria Ângela Pires.

 

De David Mestre transcreve-se um excerto do primeiro texto de O pulmão (narrativa autogeográfica), datado de Catete, Outubro de 1971 / Luanda, Março de 1972:

 

"Que posso fazer por ti?

estas as palavras frequentes que digo es-

tirado na cela ao pôr da noite em África

latitude pequena para o teu grande rosto

e acho que o mais que posso fazer é um

pedido ao cabo

pergunta-lhe se podes vir

 

ele recomendar-te-á ao sargento e dei-

xar-te-ão visitar-me estirado na cela cheio de

mim a pensar no Congo ou ainda ou já no

Congo

o meu corpo aguardar-te-á mas lembra-te

não sou eu porque eu abri um buraco no tacto [sic]

anteontem por onde saí

era preciso respirar assim levei o pul-

mão real este é de plástico

não fales senão talvez ouçam o meu silên-

cio e  te façam perguntas sobre a minha deser-

ção de mim

(...)"

 

De João Carneiro transcreve-se um dos Três Anti-Autos, datados de Luanda, Setembro de 1974:

 

"DO INFERNO

marimbo-me nas certezas fálicas do teu corpo amorfo inerte nem estás morta porque nunca soubeste ressuscitar e esta merda será talvez uma terra um país um povo e mijaremos felizes sobre as massas"

 

De Maria Ângela Pires transcreve-se o segundo dos Sete Poemas para a Cidade em Agosto, datados de Luanda, Agosto de 1974:

 

"Povoada de tiros

os olhos abertos

longamente acesos

por séculos de memória

 

Agora a revolta

nos punhos secos das mulheres

nas pernas magras nervosas

das crianças

a raiva

nos dentes dos homens

 

o grito de alívio

a saber a morte"

 

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04.03.24

Novos Contos d' África (I)


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Novos Contos d' África (1962).

Capa de Manuel de Resende (1908?-1977?).

 

Esta segunda antologia de contos da colecção Imbondeiro, que sucedeu à publicada no ano anterior, apresenta obras de Alfredo Margarido (1928-2010) – A Osga, Artur Carlos Pestana (n. 1943)  As Cinco Vidas de Teresa, Djamba Dalla (pseudónimo de Dulce Ferreira Alves Mendes de Vasconcelos, n. 1927) – Terei Eu Perdão?, Henrique Abranches (1932-2004)  Sangue como Chuva Seca, Henrique Guerra (n. 1937) – Virgínia Voltou, Horácio Nogueira (n. 1925)  Chilombo, Ingo Santos (Arnaldo Santos, n. 1936) – Joana de Cabo Verde, Julieta Fatal (datas desconhecidas)  Uma Velha que Tinha um Gato..., Luandino Vieira (n. 1935) – Os Miúdos do Capitão Bento Abano, Maria Perpétua Candeias da Silva (datas desconhecidas)  Escrava, Orlando Távora (pseudónimo de António Jacinto, n. 1924) – Vôvô Bartolomeu, Pedro Sobrinho (n. 1936) – Terra de Sol, e Reis Ventura (1910-1988) – O Drama do Velho Cafaia, conjugando num único volume a produção de dissidentes e escritores afectos ao regime do Estado Novo.

 

Tal opção editorial é sublinhada pelos editores, Garibaldino de Andrade (1914-1970) e Leonel Cosme (1934-2021), que declaram no seu preâmbulo a este volume – "Em Literatura – como noutras coisas – há quem não pense da mesma maneira, e a esse tipo de liberdade que preferimos, por não dar ensejo a dogmatismos, costumam chamar nomes feios. São os riscos próprios dos que não assinaram pactos nem tratados, dos que não crêem que um deus valha mais ou menos do que outro deus, dos que concluíram para si próprios que toda a espécie de hermetismo ideológico é um atentado contra a liberdade de pensamento – o mais sagrado direito do escritor."

 

O compromisso desta linha editorial torna-se evidente quando, nesta colectânea, coexistem narrativas que ecoam as sublevações e os massacres de 1961, em contos como Terei Eu Perdão? ou o Drama do Velho Cafaia, cujos enredos assentam na violência física e nas angústias e traumas decorrentes destes confrontos, junto da obra de um autor como Luandino Vieira, contestário do regime que, precisamente desde 1961, se encontrava encarcerado por motivos políticos.

 

Continuando também o compromisso da Imbondeiro em promover as artes plásticas como complemento das suas publicações, esta colectânea apresenta cinco ilustrações de diferentes artistas – duas de Fernando Marques (1934-2017),  duas de João Manuel Mangericão (1936-2022) e uma de Luandino Vieira.

 

 

Ilustração de Luandino Vieira para o conto Os Miúdos do Capitão Bento Abano.

 

O conto de Luandino Vieira surge na continuidade das tendências temáticas anteriormente patentes em A Cidade e a Infância (1960), as quais haveriam de voltar a surgir nos três contos apresentados em Luuanda (1963), como a vivência nos bairros da periferia urbana, a memória e a infância.

 

Sobre Luandino Vieira, refere a breve nota presente neste volume: "Luandino Vieira é pseudónimo de José Graça. Nasceu em Luanda em 4 de Maio de 1935 e é empregado comercial. Colabora em várias publicações angolanas. Representado nas colectâneas «Contistas Angolanos» e «Poetas Angolanos». Publicou «A Cidade e a Infância», contos, 1960. Colaborou nos n.ºs 14 e 23 da «Colecção Imbondeiro»".

 

De Os Miúdos do Capitão Bento Abano transcrevem-se, então, os primeiros cinco parágrafos:

 

"Alcunha, quando a gente tem, tem por alguma razão. Esta opinião sustentava sempre que o acaso me juntava com Zeca Bunéu e Carmindinha, recordando Xoxombo. Tunica nunca mais esteve presente nessas reuniões, a vida levara-a para a Europa, com seu jeito de cantar rumbas e sambas. Menina-perdida, dizia para nós sá Domingas; a vida é grande e não são só as palavras que chegam para mudá-la, justificávamos nós. Carmindinha silenciava, não punha opinião, mas sabíamos que lhe era dolorosa a recordação da irmã Tunica.

 

Nossas reuniões eram, às vezes, em casa de sá Domingas, quando eu namorava Carmindinha. Zeca Bunéu vinha depois, com seu assobio-de-bairro, chamar-me para o café, mas acabava sempre por ficar na conversa. E com sá Domingas, já velha de cabelos brancos e Bento Abano ainda lendo o jornal sem óculos, calado no seu canto, quantas vezes não recordávamos! Invariável, porém, a presença de Xoxombo em nossa conversa, emboras as lágrimas  corressem pelo carão negro e já muito enrugado da mãe. Carmindinha contava, sempre igual, sua versão de alcunha de Xoxombo. E a defendia, séria. Zeca Bunéu, com sua maneira de contar as coisas, escolhia a versão mais conhecida, a de mais malandragem, aquela que servia seu feitio de menino malandro mas bom, dado a contar histórias à sua maneira. Eu não emitia grande opinião. Gostava, é verdade, de ver Zeca Bunéu, com grandes gestos e risadas, os olhos muito grandes piscando, contar a história na sua versão. Mas olhava com amor para Carmindinha, às vezes zangada, defendendo o irmão. Só quando sá Domingas começava a chorar pela recordação que lhe fazíamos e Bento pigarreava na sua cadeira de bordão, eu interrompia. Mal, confesso. Insistia apenas no facto real: alcunha, quando alguém tem, há uma razão e se toda a gente referia Xoxombo da mesma maneira, pouco importava a a origem ou versão da alcunha.

 

Depois saíamos. Carmindinha vinha connosco, deixava que eu lhe apertasse os seios pequenos debaixo do kimono, ao segurá-la para o beijo à porta. E, com Zeca Bunéu, de noite, ia quase sempre passear à toa, pela nossa cidade adormecida.

 

Hoje, dia dois de Novembro, encontrei Carmindinha à saída do Cemitério Velho e viemos para baixo, no maximbombo da linha dois. Foi este encontro o primeiro depois de uma zanga que durou anos e nele não precisávamos mencionar Xoxombo: esteve sempre connosco, no fato preto e no cheiro enjoativo que as flores-de-mortos deixam nas pessoas. A sua história, desde essa hora, impôs-se. O tempo diluiu pormenores, esbateu insignificâncias, mas iluminou o que importa.

 

Afastado de Carmindinha todos esses anos, subtraí-me à sua influência, à sua bondade na defesa do irmão. E, sem Carmindinha presente, eu e Zeca Bunéu nunca mais falámos de Xoxombo. Sentir-me-ia culpado se não contasse a história. Talvez agora, com os elementos que os anos depositaram em mim, vindos das mais variadas versões, possa ser fiel à história de Xoxombo. Se não conseguir, a culpa não é dele, nem da aventura que lhe valeu a alcunha. É minha, que meti literatura onde havia vida e substituí calor humano por anedota. Mas eu conto na mesma."

 

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16.02.24

Carlos Gouveia - Utanha Wátua


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Carlos Gouveia (1930-2006), Utanha Wátua (1972).

Capa de Alfredo Freitas (datas desconhecidas).

 

Este volume integra a colecção Cancioneiro Angolano, que, sob a direcção de Filipe Neiva (António Filipe Sampaio Neiva Soares, n. 1940), Orlando de Albuquerque (1925-1997) e Wolfango de Macedo (Fernando Aníbal Wolfango Pereira de Macedo, n. 1931), já havia publicado Angola Poesia 71 e anunciava a próxima publicação de As Vozes Perguntam, de Orlando de Albuquerque, O Silêncio das Cidades, de Artur Queiroz (n. 1945), Fase 1, de João Serra (1950-2013) e Também já fomos um, de Ruy Burity da Silva (n. 1940), obra que já se anunciava em 1969 mas da qual não há resgisto posterior .

 

Autor de O Vagabundo da Cidade (1972), Olowali Yeto (1978), Na Rota dos Escravos (1994), em prosa, e de Olusapo (1980), A Noite do Meu Exílio (1992), De Benguela - Poemas de Amor e Não Só (1995), em verso, Carlos Gouveia colaborou em diversas publicações periódicas angolanas, como Intransigente, Jornal de Benguela, Jornal de Angola, Sul e a província de Angola. As crónicas publicadas neste último jornal, sob título homónimo, foram reunidas no primeiro volume acima referido.

 

Em 1967 foi galardoado com o primeiro prémio de poesia lírica nos jogos florais de Benguela, com o poema Prece a mamã Chica, reproduzido na presente obra, estando alguns dos seus poemas incluídos na Antologia de Poetas Ultramarinos (1971), organizada pela revista Prisma.

 

O volume Utanha Wátua apresenta 40 poemas cujas temáticas oscilam entre memórias do passado e da infância (A Idade da Fruta, O meu barco de bimba, Para lá do rio), a realidade social e racial de Angola (Chão de Terra, A Última Esperança, Dona Margarida, Madalena), o desespero latente e a ânsia por um quotidiano diferente (Motivo para um Poema, Um Poema em cada Rosto, Calulú), onde se enredam os encantos e desencantos de Benguela, e dos seus bairros suburbanos, sobre os quais pairam indizíveis indignidades e silenciadas injustiças. 

 

Manuel Nunes Cardiga (n. 1933?) faz ainda outras leituras, no seu prefácio à obra: "Poeta da negritude, Carlos Gouveia? Antes, poeta dos humildes, sem olhar à pigmentação da pele. Poeta dos dramas que super-abundam no mundo sub-urbano de qualquer cidade angolana, tornado paladino da compreensão e da fraternidade."

 

O mesmo crítico prossegue a caraterização do autor e da sua poesia acrescentando: "(...) imagens da sua vida real, ao longo do eterno peregrinar de 35 anos, através desta Benguela de feitiços, cazumbi, praias morenas, bairros e sanzalas marginais, prenhes de sofrimento e angústias."

 

Transcreve-se, de seguida, o poema que dá título a esta obra, um poema que parece ser de um minimalismo elementar, superficial e quase repetitivo, mas onde as revoltas contidas e os protestos silenciados se insinuam e sobrevivem.

 

Aliás, na dedicatória manuscrita, patente neste exemplar da obra, Carlos Gouveia refere: "(...) oferece o autor estes poemas da verdade. Toda a verdade é dolorosa por isso a reprimimos. (...)"

 

"O Sol queima

a pele das pessoas,

a cabeleira da terra

fica ressequida,

gretada,

faminta,

desolada...

 

E o grito ecoa

nos espaços siderais:

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA !

 

Lá nos longes, na montanha,

o calor queima a terra,

 o coração do homem

fragmenta-se,

a paisagem alimenta-se

de solidão...

 

Terra grávida de sede,

Homem vazio de esperança,

Milho enfezado,

mandioca desenraizada,

paisagem dolorida,

Sol de Fogo

a escaldar cabeleiras;

 

Lavra ressequida,

Céu límpido,

núvens brancas,

rosto negro,

suores frios

no calor do drama...

 

Chuva que não vem

matar a sede;

Fome que aumenta,

lavra perdida,

anémica;

Frutos pendentes,

doentes;

Pedras frias,

mudas;

Cão esquelético,

dorme,

um sono de ossos;

Abutre espreita

a vida que morre;

Homem corre

léguas de suor;

Chora,

lágrimas de dor;

Grita,

vozes de séculos;

Gesticula,

movimentos de criança !

 

A seca persiste,

a terra existe,

as raízes murcharam,

os olhos fecharam,

as bocas saciaram

mil protestos.

E o grito ecoa

nos espaços siderais:

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA ! ...

 

A paisagem magoada

colocada a nú

a escravidão do mundo ! ..."

 

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07.11.23

Revista Cultura (II)


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O número 28 desta revista apresenta o conto Destino de Bia Rosa, de Onésimo Silveira (1935-2021).

 

Natural de S. Vicente, onde concluíu os estudos liceais, estudou depois em Portugal, onde frequentou a Casa dos Estudantes do Império. Na última metade da década de 1950, após haver regressado temporariamente a Cabo Verde, passa a viver durante alguns anos em São Tomé e Príncipe, onde convive com Alda do Espírito Santo (1926-2010), fixando-se depois, a partir de 1959, em Angola.

 

Posteriormente passou algum tempo na China, estudando em seguida, ainda durante a década de 1960, na Universidade de Uppsala, na Suécia, instituição onde se veio a doutorar, em 1976.

 

Depois de, nessa década, trabalhar algum tempo na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, Onésimo Silveira tornou-se o primeiro presidente eleito da Câmara Municipal do Mindelo, vindo depois a ser embaixador de Cabo Verde em Portugal.

 

Nas áreas do conto e da poesia publicou Toda a gente fala: Sim, senhor (1960), Hora Grande; Poesia Caboverdiana (1962), A Saga das As-Secas e das Graças de Nossenhor (1991) e Poemas do Tempo de Trevas, Saga, Hora Grande (2008). Em 1960, o número 9 da Colecção Imbondeiro, que apresentou a primeira obra acima referida, anunciava ainda a futura publicação de uma colectânea de contos intitulada Maré Cheia, de que não foi possível encontrar registo de edição.

 

Do conto Destino de Bia Rosa transcreve-se um excerto, corrigindo já as diversas gralhas apresentadas na revista mas mantendo a grafia da época:

 

"O sol a pique tudo abrasava. O barulho ensurdecedor da fábrica de óleo de palma era uma nota fastidiosa no meio da calmaria.

 

Nas senzalas os que conseguiram findar a sua tarefa estendiam-se à sombra para se recomporem; outros limpavam e arrumavam os seus tarecos porque no dia seguinte – domingo – chegavam serviçais caboverdianos.

 

Chegou a tarde e, depois, a noite que envolveu em densa escuridão a roça inteira. Tão sòmente as lâmpadas espalhadas em redor da casa do patrão quebravam, com a sua luz amarelada, a monotonia que invadira as senzalas.

 

Domingo.

 

Nove horas e já todos os serviçais se acham em casa. Preparam com mais cuidado o almoço e as raparigas vestem os seus vestidinhos melhores.

 

O ronco de um motor alvoroçou os caboverdianos, após período de longo e desacostumado silêncio. Era a camioneta da roça que assomava lá ao cimo da encosta que dá para o terreiro. As pessoas que vinham nela, tontas de calor não davam sinal de vida...

 

Chegou enfim!

 

Mantenhas, encomendinhas, abraços, choros, novidades! De todos os lados chovem perguntas.

 

– Trouxemos dois violões, um cavaquinho e um banjo – respondeu Lela Canhota a pergunta de Pedrim.

 

– E grogue? – indagou Pedrim novamente.

 

– Grogue! O que os safados dos guardas não nos tomaram em Fernão Dias está connosco.

 

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

 

Nunca a roça vivera momentos de tanta euforia! Os serviçais pediam mornas. – «Mornas novas»! – gritavam – mornas de B. Léza!

 

À tristeza do anoitecer dos dias anteriores sucedeu uma série de canções dolentes que tanto diziam aos seus executantes – que lhes restituiam parte da alma deixada na terra natal!

 

Pedrim convidou a primeira dama a jeito e, com alguns cálices de grogue já enfiados, desatou a mornar, a mornar..."

 

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31.08.22

José Luandino Vieira - Luuanda


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José Luandino Vieira (pseudónimo de José Vieira Mateus da Graça, n. 1935), Luuanda (1963; presente edição, 1983).

 

A obra Luuanda foi galardoada em 1965 com o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE), embora o texto tenha sido entretanto revisto e surja, em edições posteriores, com uma datação delimitada pelo próprio autor, como acontece no presente volume, entre 1963 e 1972.

 

O facto de Luandino Vieira ter estado encarcerado entre 1961 e 1972, devido à sua actividade política de constestação ao regime salazarista e à política ultramarina deste, e ter sido galardoado com aquele prémio originou uma forte contestação e criou uma polémica que levou à extinção da SPE.

 

As capas da edição brasileira de 1965 e da primeira edição portuguesa lançada depois do 25 de Abril de 1974 podem ser vistas  num anterior artigo (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/14967.html).

 

Esta obra apresenta três contos – Vavó Xíxi e seu Neto Zeca Santos, Estória do Ladrão e do Papagaio, Estória da Galinha e do Ovo, que podem ser considerados, sob diversos aspectos, como visões alternativas à Luanda que Reis Ventura (1910-1988), escritor vinculado ao regime, havia descrito e narrado na sua trilogia (Cenas da Vida de Luanda) dedicada à cidade e iniciada na década anterior – Quatro Contos por Mês (1955), Cidade Alta (1958) e Filha de Branco (1960).

 

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21.06.22

M. António - Crónica da Cidade Estranha


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M. António (Mário António Fernandes de Oliveira, 1934-1989), Crónica da Cidade Estranha (1964).

 

Ensaísta, ficcionista e poeta, Mário António havia publicado até à data de edição desta obra os seguintes livros de poesia Poesias (1956), Amor (1960), Poemas & Canto Miúdo (1960), Chingufo - Poemas Angolanos (1962; prémio Camilo Pessanha), 100 Poemas (1963; prémio Ocidente) e o romance Gente para Romance: Álvaro, Lígia, António (1961), para além de ter colaborado em diversas revistas, como Mensagem (1952), e publicado alguns ensaios.

 

Posteriormente haveria de publicar Farra de Fim-de-Semana (1965), Mahezu (1966), Era Tempo de Poesia (1966), Luanda - Ilha Crioula (1968), Rosto da Europa (1968), Coração Transplantado (1970) e inúmeros ensaios que marcariam o seu percurso académico e de investigação, o qual culminaria num Doutoramento em Estudos Portugueses, com especialização em Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (1987).

 

Depois de concluir o curso liceal, em Luanda, foi observador meteorológico de 1952 a 1963, ano em que passou a frequentar, em Lisboa, o curso de administração ultramarina no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Enquanto activista político, colaborou na fundação do Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (1953) e do Partido Comunista Angolano (1955), partidos que haveriam de estar na origem do Movimento Popular de Libertação de Angola, fundado em 1956.

 

É ainda autor da letra do conhecido Poema da Farra, musicado e cantado por Ruy Mingas (n. 1939).

 

A presente obra divide-se em duas secções – a primeira, com uma narrativa mais longa, datada de 1957-58, que se desenrola ao longo de 83 páginas e XV capítulos; a segunda, intitulada Apêndice, com um conjunto de dez textos mais curtos, ostentando títulos diferenciados cada um, apresentados ao longo de 32 páginas.

 

Do capítulo XIV transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Ele ama os cheiros da cidade como ninguém. ou talvez não seja bem assim. há os que os não sentem, mergulhado sempre neles; e há os acostumados aos ambientes esterilizados, inodoros (mas têm um cheiro, sim, que ele já sentiu!), que deitam a mão ao nariz quando o seu apurado olfacto acusa certas presenças incomodativas. Incomodativas e plebeias.

 

Mas ele acha que sim, que tudo tem um cheiro. E os únicos cheiros que não ama são precisamente aqueles que a patroa não sente na casa onde tem de limpar constantemente os móveis, o chão, tomar banho (a patroa sempre aflita com o seu cheiro de catinga), cheiros que não são da vida, mas só cheiros, isolados, incomodativos. Sim, esses realmente incomodativos: o «polish», a graxa, a cera e, agora se lembra, aquelas coisas que fazem da senhora uma pessoa diferente, depois que ela se fecha no quarto para se preparar.

 

Dos outros cheiros ele gosta, ou melhor: entrega-se-lhes. O cheiro a terra, material, entrando pelas narinas, da sua cubata. Cheiro variável com o tempo. Enorme, envolvente, colando-se ao corpo, quando o Sol do meio-dia reduz as sombras; repousante, sossegado, à noite, quando a paisagem dorme; inquietante, como uma mulher, quando a chuva se vai embora e pingos desgarrados tamborilam no zinco do telhado.

 

Há ainda os vários cheiros da vida, os cheiros das aglomerações humanas. De todos, o mais complexo, vário, colorido, gritante, é o do mercado, com as mulheres sentadas no chão, as quindas à volta, um abano a afugentar as moscas que querem pousar nos bagres secos, negros e submetálicos; no bombó assado; na batata-doce escondendo sob a pele queimada, baça, uma quentura amarela; nos dendéns vermelhos; nos limões de casca seca e ácida; nos cocos cor de capim da cubata... ou então em coisas que ele aprecia mais mas que são raras, misteriosas e estranhas, como o jinjimo ou o muxilo-xilo, cada um exalando o seu cheiro, numa longa gama, com gradações, correspondências e contrastes, dispersões e tempos mortos, pausas e sequências até ao infinito, numa composição avassalante. Diante do mercado – a mais complexa composição de cheiros que conhece –, ele não resiste: entrega-se. E fecha os olhos precisamente pela mesma razão por que o senhor doutor fecha os dele, ao pé da telefonia, a ouvir aqueles sons que ele também gostaria de entender, mas só lhe chegam de mistura com o tinir da louça que lava.

 

E os cheiros acres, poderosos, construtivos, dos homens no trabalho? Lembra-se de quando trabalhou na estrada, a picareta, na longa fila de homens vergados. Um cheiro que tinha modulações, ia a dizer, musculares, se retinha e expandia, e martelava com um som cavo e compassado nas suas narinas. Um cheiro poderoso, hipnotizante, que identificava os homens.

 

Também lhe agradavam os cheiros da praia, das formas coloidais que a maré vazante deixa sobre a areia, um cheiro que parece vir de baixo da terra e sobe, sobe, até afogar um homem. Ou o cheiro do fumo das fogueiras em que se assam mabangas, vivo, pontuado de renúncia e estranhamente apetitoso. Ou ainda o cheiro do peixe a secar ao sol, tão identificado com a luz que dir-se-ia vir do alto e ocupar todo o espaço."

 

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