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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

26.10.21

Castro Soromenho - A Chaga


blogdaruanove

 

Castro Soromenho (1910-1968), A Chaga (1970 [1964]; presente edição, terceira, 1985).

 

Embora o manuscrito seja datado de 1964, esta obra de Castro Soromenho apenas foi publicada postumamente. A primeira edição surgiu no Brasil (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970), a segunda em Portugal (Lisboa: Sá da Costa, 1979) e esta, a terceira, em Angola (Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1985).

 

A curiosidade desta terceira edição é que, efectivamente, foi impressa na República de Cuba, pelas Ediciones Cubanas, para a União dos Escritores Angolanos, no período de intervenção cubana em Angola, de apoio ao Movimento Popular de Libertação de Angola, que decorreu entre 1975 e 1991.

 

Recorrendo sempre às memórias que guardou de África, de onde saíu com menos de trinta anos, à vivência governativa de seu pai e à sua própria experiência administrativa, e até como recrutador de mão de obra, Castro Soromenho evoca aqui a herança negreira, que se prolongou até ao século XIX e ainda ecoava nalgumas práticas do século XX, denunciando os abusos e desvios de certos funcionários coloniais perpetrados a coberto dos seus cargos administrativos.

 

Contudo, o autor não deixa de abordar o antagonismo e as divergências existentes entre várias etnias, apontando essa como uma das razões para a administração portuguesa colocar lundas nos cargos de  sipaios e capitas a controlar grupos de quiocos. Nesta sua habitual digressão pela caracterização étnica, coloca ainda os bangalas de permeio, como sendo aqueles que têm um certo sentido poético e ouvido musical.

 

Metaforicamente, as duas povoações com um só nome – Camaxilo, desdobram-se em muitas mais, pois, para além das povoações dos brancos e dos negros, existem dentro delas ainda outras "povoações", como a dos colonos e a da administração, a dos sipaios e capitas e a dos prisioneiros, a dos lundas e quiocos, ou a dos mestiços. A questão da mestiçagem, como decorrente de uma situação de facto mas não de jure, formalizada ou legalizada através do casamento entre brancos e negras, serve ainda para tratar frontalmente o racismo e o hipócrita relacionamento colonial entre raças.

 

Transcrevem-se de seguida os  primeiros parágrafos deste romance:

 

"As árvores estavam mergulhadas no nevoeiro e das frondes pesadas do orvalho da madrugada tombava uma chuva miudinha que fazia tiritar os homens que marchavam, em longa fila indiana, no vale de Camaxilo, para chegarem às suas terras altas antes de o cabo de sipaios apagar a fogueira do terreiro onde se apruma o pau da  bandeira.

A mão calosa de Gunga estendeu-se sobre o braseiro que restava da noite, os dedos megulharam rapidamente na cinza e como tenaz truxeram uma brasa, logo solta na palma da mão e rolada para a boca do cachimbo de água. Com sofreguidão puxou uma fumaça, uma nuvem de fumo envolveu-lhe a cara talhada de rugas, piscou os olhos raiados de sangue e atirou-se para a frente sacudido por forte ataque de tosse. Escarrou para o chão e quedou-se acocorado com a mutopa fumegante nas mãos a olhar para o vale ravinado a seus pés e esbeiçado no outro lado numa encosta suave a rasar-se à beira da povoação dos colonos. As cinco casas dos comerciantes, com grandes quintais defendidos dos matagais e da surtida da onça por fortes paliçadas, recortavam-se na luz do amanhecer na orla da planície de largos horizontes azuis para as bandas de Caungula.

Gunga acabava de enxergar o vulto, alto e esguio, do velho colono Lourenço, encostado a um pilar da varanda da sua casa de adobe, à beira da estrada que talha a planície, atravessa o povoado de colonos e, sombreada pela floresta de acácias vermelhas, desce numa curva à garganta do vale para através da ponte de madeira se prolongar em rampa até à povoação dos funcionários. Duas povoações e um só nome – Camaxilo.

Todas as manhãs, o velho Lourenço está ali na varanda a fumar o seu primeiro cachimbo, olhando para Camaxilo de cima onde, à volta do terreiro centrado pelo pau da bandeira e por uma mangueira de grande copa, branquejam os edifícios da Administração e residências dos funcionários. A gente do governo, civis fardados, alcandorara-se no alto do vale, com vista rasgada sobre a povoação de baixo, as lojas dos colonos a olho nu.

Entre o negro velho e o colono velho abre-se o vale, o rio Camaxilo ao fundo, o primeiro postado no alto das ravinas, o outro lá embaixo na lomba da encosta, à boca da planície. Ali estão há um ror de anos sob o mesmo céu ardente e sobre a terra perfumada de acácias."

 

© Blog da Rua Nove

02.02.14

Henrique Lopes Guerra - A Cubata Solitária


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas), desenho de Henrique Abranches (1932-2004).

 

Henrique Lopes Guerra (n. 1937), A Cubata Solitária (1962).

 

Este volume em prosa de Henrique Guerra, o primeiro da sua bibliografia, foi publicado enquanto prestava serviço militar obrigatório como alferes miliciano.

 

No entanto, esse serviço prestado à nação não significava que não manifestasse a sua contestação à política do regime salazarista, razão pela qual veio a ser perseguido e encarcerado, intermitentemente, entre 1965 e 1973.

 

Antes de esta edição, Henrique Guerra havia já colaborado em publicações periódicas, como as revistas Cultura e Mensagem, e os jornais ABC - Diário de Angola e Jornal de Angola.

 

Posteriormente, já depois da independência de Angola, veio a publicar Quando Me Acontece Poesia (1976) e Alguns Poemas (1977), em verso, e, em prosa, Três Histórias Populares (1982) e a peça de teatro O Círculo de Giz de Bombô (1979). Publicou ainda o ensaio Angola - Estrutura Económica e Classes Sociais (1975).

 

Neste volume incluem-se três breves contos – O Regresso do Lunda, Mucanda, a Escola da Vida e A Cubata Solitária, onde o autor claramente enuncia o respeito pelas heranças e pelas tradições angolanas como motivo central das suas narrativas.

 

Em O Regresso do Lunda relata-se uma viagem do protagonista à descoberta de si próprio e do seu destino. Tal metáfora adquire nova leitura quando se fala de Ilunga, o soba que ficou à frente dos Lundas e pactua com os brancos, e de Quingúri, o rebelde que transformou os Lundas num novo povo nómada e insubmisso – os Quiocos.

 

Este motivo da independência e da insubmissão é retomado em A Cubata Solitária, onde se relata a vida independente e solitária de Calibo. Aqui, contudo, o desaparecimento de Calibo e a temerosa superstição que lhe sobrevem, associada pelo povo ao seu espírito e à sua cubata abandonada, denotam antes a perda desses valores.

 

No curtíssimo conto Mucanda, a Escola da Vida, perante o rito da circuncisão e a morte de Epaka, coloca-se-nos a questão da honra e responsabilidade que se apresenta a seu pai, Txipangue.

 

 

 

Do conto O Regresso do Lunda transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Uma noite, sentindo a alma revolta como a superfície de um lago onde lutam jacarés, o homem apartou-se  dos que se divertiam na dança. Cheio de desprezo e de ódio, o lunda abandonou a sanzala, ganhou as sombras da noite e o vazio da distância.

 

Resolvera seguir a pista dos seus irmãos, que haviam partido num dia de sol e de revolta, e àquela hora conquistavam o terror e o espanto de povos estranhos e o amor de lindas mulheres.

 

Mas ai dele, muitos anos haviam decorrido.

 

Os que tinham agido no momento preciso de há muito estavam de alongada e ninguém sabia dizer em que sítio preciso se encontravam naquele momento.

 

Haviam chegado ao mar, à famosa cidade de Luanda, atraídos pela fama do grande soba dos brancos, ao serviço do qual combateram. Anexaram os Bangalas, atravessaram o país dos Jingas, derramaram-se mais para o Sul, inquietando os Bienos e dividindo os agricultores Ganguelas, pacífico povo de poetas e cantares. E por toda a parte o cordão quioco ia engrossando como se engrossa um grande rio, anexando povos vários de costumes estranhos, graças ao seu extraordinário poder de assimilação.

 

O lunda errou luas e luas à procura de seus irmãos. Mas os guerreiros de Quingúri eram tão irrequietos como valentes, ninguém sabia indicar o término do seu rasto, as mulheres riam-se à passagem do lunda desgraçado e os homens sentiam um prazer maldoso em mandar os cães e as crianças enxotarem aquele representante da raça maldita."

 

© Blog da Rua Nove