Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

27.07.13

Nuno Bermudes - O Círculo de Luz (I)


blogdaruanove

Capa e desenhos de José Pádua (n. 1934).

 

Nuno Bermudes (1924-1997), O Círculo de Luz (1973).


Esta obra de Nuno Bermudes apresenta alguns aspectos extrínsecos às suas características literárias que merecem breves notas prévias.


O primeiro relaciona-se com o facto de esta obra marcar o início da breve fase editorial da Casa Salema, uma livraria cuja actividade se desenvolveu na cidade da Beira durante cerca de cinco décadas.


Profusamente ilustrada com dezassete desenhos (consideraram-se nesta categoria os desenhos reproduzidos em página inteira) e dezasseis vinhetas de José Pádua, desenhos dos mais interessantes e conseguidos na década de 1970 por este artista, a obra caracteriza-se ainda pelo belo tipo de letra escolhido para o texto das narrativas. 


O segundo aspecto relaciona-se com o interessante prefácio, de oito páginas, assinado por Fernando Couto (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/7113.html), e o terceiro com o glossário apresentado no final da obra.


Como seria de esperar, neste glossário surgem diversas designações relacionadas com a fauna – chango, charu, cudo, gondonga, impala, inhacoso, inhala, inharuguè, inhate, mamba, mussopo, oribi, pala-pala, secretário, sengo, tuca, que justificam quase só por si este apêndice com 24 entradas.


Da narrativa O Círculo de Luz transcrevem-se os primeiros parágrafos:


"No tando envolto pelo manto espesso de uma noite sem luar, a paz é qualquer coisa em que quase se pode tocar com os dedos, tão viva e tão presente ela paira sobre tudo e de tudo tão viva e tão presente se desprende.


Só o trilar de uma cigarra com insónia ou um vago rumor de asas, entre a folhagem da floresta perto, de vez em quando enruga a negra e lisa pele do silêncio que se espalha pela planície, se insinua na copa do arvoredo e voga nas lagoas e nos pântanos, docemente, entre juncais.


Imprevistamente, porém, o rosnar rouco de um motor despedaça a quietude nocturna e uma camioneta assoma, lá no extremo da planura, e adianta-se, vagarosamente, abrindo uma risca tortuosa na cabeleira crespa do capim.


Precede-a uma lâmina de luz intensa que, esgrimida por mão hábil, percorre, viola, trespassa a escuridão, reanimando as ervas e as pedras, devassando os mais ocultos recessos do mato, demorando-se aqui, perscrutando ali, logo se projectando, rápida, para além.


No seu rasto, milhões de insectos esvoaçam doidamente.


Borboletas e gafanhotos, despertos pela rude voz da máquina, atiram-se e esmagam-se de encontro ao rosto impávido do monstro metálico que, inexoràvelmente, avança."


© Blog da Rua Nove

10.11.11

Joaquim Paço d'Arcos - O Samovar


blogdaruanove

 

 

Joaquim Paço d'Arcos (1908-1979), O Samovar (1957).

 

Esta edição autónoma do conto O Samovar foi efectuada a partir do original publicado no livro O Navio dos Mortos e Outras Novelas (1952), tendo este título voltado a ser utilizado posteriormente numa colectânea de Joaquim Paço d'Arcos, O Samovar e Outras Páginas Africanas (1972).

 

Com uma acção apresentando breves passagens pela Suécia e Suíça e uma mais longa pela África do Sul, esta narrativa relata o singular percurso de Marya Dmitryevna, Madame Fazenda após o seu segundo casamento, desde a saída da Rússia, sua terra natal, até à chegada a Moçambique.

 

Num espaço temporal que o autor declara decorrer "entre as duas grandes guerras", assistimos depois à migração da protagonista dentro de Moçambique, desde a povoação que se desenvolvia na foz do Pungue (actual cidade da Beira), até ao Chimoio e à Zambézia.

 

Evocando as memórias ficcionalizadas do autor sobre a  sua estadia no território então administrado pela Companhia de Moçambique, a narrativa conclui com a morte da protagonista poucos meses depois da invasão da Polónia, datada de 1 de Setembro [de 1939], acabando ainda por mencionar uma nova visita do narrador à cidade da Beira, após o final da guerra, romagem essa que terá originado estas memórias.

 

Deste conto trancrevem-se dois parágrafos:

 

"Mas madame Fazenda não tinha uma exigência, um queixume. Passava o dia inteiro sentada na cadeira de palha, na varanda. Dali governava a casa, ralhava com o moleque, gritava para o marido que eram horas de almoço ou de jantar, conversava com uma ou outra rara visita, via passar os transeuntes, seu principal entretenimento, e retribuia com o sorriso nédio as saudações dos que a cumprimentavam.

 

De tanto lhe passar à porta ascendi de transeunte a visitante. Às vezes, ao fim da tarde, dava-lhe dois dedos de conversa. Ela nunca perdera o forte sotaque estrangeiro e a língua que falava era uma mexerufada do idioma natal, de português, do inglês dos bars e do patuá tosco dos moleques com quem lidava de perto. Era muito sensível a todas as provas de deferência. Não se julgava rica, nem sequer remediada, porque o marido nunca lhe dava contas dos negócios, do que tinha ou deixava de ter. Mas considera-se, por ser um dos habitantes mais antigos da cidade, e por aquela longa vida exemplar ao lado do Fazenda, com jus ao respeito dos que tinham chegado muito depois dela e não haviam passado pelo que ela passara. Não o dizia abertamente, mas esse pensamento norteava nìtidamente a sua atitude. E caso curioso: velha, gorda, desdentada, gasta pela vida, abandonada ao calor dentro duns roupões enormes em que o seu corpo pesado e flácido escorregava como massa de gelatina, Madame Fazenda era uma senhora. O dobrar do tempo e aquela quase imobilidade numa varanda nua dum casebre de África, com as redes de protecção rotas  e tombadas nos caixilhos das janelas – para que gastar dinheiro a repará-las? dizia o marido, os mosquitos já não metiam dente nem com ele nem com a velha –, o dobrar do tempo e o alheamento de todos os interesses, de todas as lutas, haviam-lhe incutido um estado de espírito totalmente oposto ao do companheiro que a seu lado enriquecia e enriquecia sem ela se aperceber sequer."

 

© Blog da Rua Nove