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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

26.10.21

Castro Soromenho - A Chaga


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Castro Soromenho (1910-1968), A Chaga (1970 [1964]; presente edição, terceira, 1985).

 

Embora o manuscrito seja datado de 1964, esta obra de Castro Soromenho apenas foi publicada postumamente. A primeira edição surgiu no Brasil (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970), a segunda em Portugal (Lisboa: Sá da Costa, 1979) e esta, a terceira, em Angola (Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1985).

 

A curiosidade desta terceira edição é que, efectivamente, foi impressa na República de Cuba, pelas Ediciones Cubanas, para a União dos Escritores Angolanos, no período de intervenção cubana em Angola, de apoio ao Movimento Popular de Libertação de Angola, que decorreu entre 1975 e 1991.

 

Recorrendo sempre às memórias que guardou de África, de onde saíu com menos de trinta anos, à vivência governativa de seu pai e à sua própria experiência administrativa, e até como recrutador de mão de obra, Castro Soromenho evoca aqui a herança negreira, que se prolongou até ao século XIX e ainda ecoava nalgumas práticas do século XX, denunciando os abusos e desvios de certos funcionários coloniais perpetrados a coberto dos seus cargos administrativos.

 

Contudo, o autor não deixa de abordar o antagonismo e as divergências existentes entre várias etnias, apontando essa como uma das razões para a administração portuguesa colocar lundas nos cargos de  sipaios e capitas a controlar grupos de quiocos. Nesta sua habitual digressão pela caracterização étnica, coloca ainda os bangalas de permeio, como sendo aqueles que têm um certo sentido poético e ouvido musical.

 

Metaforicamente, as duas povoações com um só nome – Camaxilo, desdobram-se em muitas mais, pois, para além das povoações dos brancos e dos negros, existem dentro delas ainda outras "povoações", como a dos colonos e a da administração, a dos sipaios e capitas e a dos prisioneiros, a dos lundas e quiocos, ou a dos mestiços. A questão da mestiçagem, como decorrente de uma situação de facto mas não de jure, formalizada ou legalizada através do casamento entre brancos e negras, serve ainda para tratar frontalmente o racismo e o hipócrita relacionamento colonial entre raças.

 

Transcrevem-se de seguida os  primeiros parágrafos deste romance:

 

"As árvores estavam mergulhadas no nevoeiro e das frondes pesadas do orvalho da madrugada tombava uma chuva miudinha que fazia tiritar os homens que marchavam, em longa fila indiana, no vale de Camaxilo, para chegarem às suas terras altas antes de o cabo de sipaios apagar a fogueira do terreiro onde se apruma o pau da  bandeira.

A mão calosa de Gunga estendeu-se sobre o braseiro que restava da noite, os dedos megulharam rapidamente na cinza e como tenaz truxeram uma brasa, logo solta na palma da mão e rolada para a boca do cachimbo de água. Com sofreguidão puxou uma fumaça, uma nuvem de fumo envolveu-lhe a cara talhada de rugas, piscou os olhos raiados de sangue e atirou-se para a frente sacudido por forte ataque de tosse. Escarrou para o chão e quedou-se acocorado com a mutopa fumegante nas mãos a olhar para o vale ravinado a seus pés e esbeiçado no outro lado numa encosta suave a rasar-se à beira da povoação dos colonos. As cinco casas dos comerciantes, com grandes quintais defendidos dos matagais e da surtida da onça por fortes paliçadas, recortavam-se na luz do amanhecer na orla da planície de largos horizontes azuis para as bandas de Caungula.

Gunga acabava de enxergar o vulto, alto e esguio, do velho colono Lourenço, encostado a um pilar da varanda da sua casa de adobe, à beira da estrada que talha a planície, atravessa o povoado de colonos e, sombreada pela floresta de acácias vermelhas, desce numa curva à garganta do vale para através da ponte de madeira se prolongar em rampa até à povoação dos funcionários. Duas povoações e um só nome – Camaxilo.

Todas as manhãs, o velho Lourenço está ali na varanda a fumar o seu primeiro cachimbo, olhando para Camaxilo de cima onde, à volta do terreiro centrado pelo pau da bandeira e por uma mangueira de grande copa, branquejam os edifícios da Administração e residências dos funcionários. A gente do governo, civis fardados, alcandorara-se no alto do vale, com vista rasgada sobre a povoação de baixo, as lojas dos colonos a olho nu.

Entre o negro velho e o colono velho abre-se o vale, o rio Camaxilo ao fundo, o primeiro postado no alto das ravinas, o outro lá embaixo na lomba da encosta, à boca da planície. Ali estão há um ror de anos sob o mesmo céu ardente e sobre a terra perfumada de acácias."

 

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31.01.21

Castro Soromenho - Histórias da Terra Negra (I)


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Castro Soromenho (1910-1968), Histórias da Terra Negra [volume I] (1960).

 

Estas Histórias da Terra Negra reunem em dois volumes, com extra-textos de Alice Jorge (1924-2008) e Júlio Pomar (1926-2018) e vinhetas de Salgado Dias (datas desconhecidas), todas as obras de Castro Soromenho publicadas até então.

 

No primeiro volume, o prefácio do consagrado sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974), datado de 1959 e simultaneamente publicado no original francês e na tradução de Mário de Andrade (1928-1990),  desenvolve-se num ensaio crítico de catorze páginas, intitulado L' Afrique dans l'oeuvre de Castro Soromenho, que destaca Castro Soromenho como autor cimeiro da literatura portuguesa em geral e enquadra a sua obra no neo-realismo, em particular.

 

Este prefácio é seguido, neste volume, de dois livros, um dedicado aos Contos e Novelas, onde surgem os textos Samba, Calenga, Os Escravos dos Deuses, Rajada, A Morte da "Chota", A Árvore Sagrada, A Voz da Estepe, Perdeu-se no Caminho e O Lago Enfeitiçado, outro dedicado à Narrativa, onde surge o texto Lueji e Ilunga na Terra da Amizade.

 

Do prefácio de Bastide será talvez interessante destacar duas passagens, uma dedicada à literatura portuguesa, outra à obra de Soromenho.

 

Diz a primeira – "La littérature portugaise a toujours hesité entre deux tendances, une tendence centripète qui la lie à l'Espagne et à l'Europe, lui fait prendre le sentiment de sa responsabilité dans le concert des grands nations du continent, et l'autre, la contre-balançant, une tendance atlantique, qui la jette aux quatre vents de l'aventure et qui aujourd'hui la lie charnellement à l'Afrique. De là l'importance du «roman colonial»".

 

E a segunda – "Mais avec Castro Soromenho, le roman colonial cesse d'être le roman portugais du voyageur, séduit par l'appel de l'océan, l'exotisme des contrées lontaines, envoyant à la métropole une simple série de cartes postales illustrées et pittoresques. Il est celui de l'homme qui s'est enraciné en Angola; qui est y est né une seconde fois; s'est laissé refaçonner par la steppe, la solitude, le soleil et par les deux batouques, celui des hommes noirs dans le village, celui des dieux noirs dans le déchaînement des éclairs et de la pluie."

 

É possível que Bastide não tivesse um conhecimento alargado de diversos outros importantes autores da literatura colonial portuguesa, como Ferreira da Costa (1907-1974) e Henrique Galvão (1895-1970), enquanto paradigmas de narrativas enraizadas na essência africana, ou Manuel Ferreira (1917-1992) e Manuel Lopes (1907-2005), enquanto paradigmas maiores de narrativas neo-realistas, mas o destaque concedido à obra de Castro Soromenho é inteiramente merecido, não só como um dos pioneiros da literatura colonial portuguesa do século XX mas também como um dos mais notáveis escritores da prosa portuguesa de meados desse século.

 

 

Do conto Perdeu-se no Caminho transcrevem-se agora os primeiros parágrafos:

 

"Os homens caminhavam de costas voltadas para o sol, de regresso à aldeia, que a lonjura da estepe não deixara enxergar, mas que eles sabiam alcandorada além à beira de um abismo.

À frente marchavam os caçadores, azagaia ao ombro, passo largo, medindo pela jornada do Sol [sic] o caminho a vencer. À distância de um grito troteavam os carregadores, em longa fila indiana, paus lançados de ombro a ombro, vergados ao peso dos antílopes a escorrerem sangue. Pisavam-lhes as pegadas garotos com balaios à cabeça.

No carreiro, a serpentear pelo capinzal, alongava-se o rastro de sangue da carne morta.

Para além dos passos perdidos, nos caminhos transviados na linha azul da terra longe, o sol [sic] abriu-se em labaredas que, logo, incendiaram o céu para um crepúsculo rápido. No trilho das miradas a galgarem lonjuras caía uma penumbra macia e langue sobre a planície quente.

A voz do caçador que abria o caminho quebou [sic] o silêncio profundo da savana. Todos os olhares bateram o horizonte. Longe, uma coluna de fumo aprumava-se no caminho do céu a ensombrar-se. E os homens estugaram o passo. Queriam chegar à aldeia antes da noite. Ninguém desejava partilhar com leões e hienas, em pleno descampado, o festim da caçada.

Aqueles homens vinham de longe, da terra ensombrada pelo muxito do rio Xicapa. Foi ali, na clareira da pequena floresta aberta pelo rio, que eles surpreenderam a caça. As lanças afocinharam os bichos no seu bebedoiro. Aos gemidos dos animais em agonia os homens juntaram os seus gritos de triunfo.

Depois acenderam fogueiras e acocoraram-se à sua volta. Comeram, mãos e bocas cheias de sangue, nacos de carne mal passada por labaredas. Enconcharam as mãos e beberam água do rio. E fumaram pelo mesmo cachimbo. E falaram em caçadas e mulheres – e riram, riram as suas grandes gargalhadas. Horas depois, a cantarem, dizendo aos quatro ventos que eram quiocos, guerreiros valentes que não temem a morte, embenharam-se na pequena floresta para ganharem de nova a planície de capim amarelo, batida de lés a lés pelo sol chamejante.

E agora estão chegados à aldeia, na boca da noite, anunciando com cantigas bárbaras os feitos da caçada. Com gritos e palmas ritmadas, o povo saúda os seus caçadores, que trazem carne para a grande festa das sementeiras.

Gulo, o mais novo dos caçadores, que há  pouco deixara de ser escravo do soba, é apontado pelos companheiros como o mais valente e esperto na luta com a caça. Com gritos festivos, todas admiradoras se voltaram para ele. E Gulo sorriu aos companheiros.

As mulheres fizeram roda e puseram-se a cantar em louvor de Gulo, o macho valente e belo, que nem do leopardo ou leão tinha medo.

Entre as mulheres que o festejavam o caçador viu Samba, a jovem que lhe fora prometida, sorrir-lhe com a boca carnuda e os olhos húmidos cheios de desejos. E mal o povo se dispersou, sempre ruidosa a sua alegria, ele abeirou-se da rapariga e convidou-a a acompanhá-lo à festa das sementeiras."

 

 

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08.12.16

Castro Soromenho - A Voz da Estepe


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Castro Soromenho (1910-1968), A Voz da Estepe (s.d. [c. 1956]).

 

Este opúsculo de 48 páginas republica dois contos do autor – A Voz da Estepe e Samba, que anteriormente haviam sido incluídos na sua obra Rajada e Outras Histórias (1943). 

 

Do conto que dá o título a este volume transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Um som vibrante de tambor quebrou o ar e foi levado pelo eco que o atirou planície fora. Matembele ainda tinha punhos fortes, mas ele próprio se surpreendeu com a violência com que tocara o atabaque.

 

– Velho, tu ainda estás novo! – disse-lhe um dos caçadores, o Capua, que desde rapaz só o tratava por velho.

 

Matembele riu e, entusiasmado como uma criança, recomeçou a martelar o tambor, para que todos ouvissem bem que começara a caçada a fogo de Dumba-iá-Cuito.

 

– O vento está bom – disse o velho, com a boca e os olhos a rirem.

 

E, entregando o tambor a um moço, empunhou o fuzil e dirigiu-se para o rio, abrigando-se à sombra da árvore, junto ao ancoradoiro.

 

Na linha azul do horizonte, começou a desdobrar-se uma serpentina de luz alaranjada, que em breve se transmudou numa faixa vermelha, como uma estrada de fogo entre o céu e a terra. De repente, rolou sobre essa faixa uma onda rubra que incendiou o céu, como um pôr de sol, e um rumor de mar encapelado correu sobre a planície, e com ele o vento trouxe uma onda de ar quente. E, de pronto, a voz da estepe acordou em todos os recantos.

 

Do capinzal largaram bandos de borboletas, de lindas e variegadas cores, em demanda da frescura rio, inquietadas com os rumores da planície. Matembele ficou-se a olhá-las com olhos de criança. Um grande pássaro negro riscou o espaço, batendo ruidosamente as asas sobre a cabeça do velho, e lançou um grito agoirento; e como se esse grito fosse aviso de desgraça a todos os pássaros da planície, logo o céu se encheu de asas das mais variadas cores, que se perderam para além do Cuilo.

 

Agora já não se enxerga a linha azul do horizonte. No céu que tomba sobre a terra reflectem-se as vagas de chamas que o vento ondula na planície. Ouve-se, num rumor distante, a respiração ardente da estepe. Os caçadores estão excitados com os rumores que vêm da planície e com a espera da caça. Para as bandas do rio, cruzam-se gritos de alegria selvagem, comentando a marcha do fogo e a violência do vento. Mas ainda não há sinal de caça, nas terras ribeirinhas e nas faixas que de um lado e do outro dividem a planície e são barreiras para o fogo e pontos de apoio de caçadores, porque, se o vento mudar de direcção, atirando com o fogo para ali, toda a caça que foge, em tropel, à frente do fogo, irá ao seu encontro.

 

Uma corpulenta pacaça e três tímidas gazelas, deitaram a cabeça para fora fora do capinzal, mas, logo que viram um dos caçadores, retrocederam precipitadamente. Ninguém deu um passo em sua perseguição, esperando pelo momento em que elas se viessem entregar à morte, quando já não pudessem suportar o calor ou açodadas pelo fogo. De repente, nas terras nuas da margem do rio surgiram, fugidos do capinzal, centenas de ratos, soltando guinchos e correndo como loucos, o que causou grande alegria aos caçadores que, por divertimento, os perseguiam com gritos e os chibatavam."

 

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21.10.16

Castro Soromenho - A Maravilhosa Viagem


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Castro Soromenho (1910-1968), A Maravilhosa Viagem (1961).

 

 

Da Primeira Parte, Capítulo Quarto, transcrevem-se três parágrafos:

 

"Vieram do Bailundo distante os primeiros homens que viveram nestas terras com o nome tribal de Sambos. Mas há mais de dois séculos que aqui vieram parar os Nhembas. O seu chefe edificou cubatas no alto de um outeiro, no meio de vasta planície cruzada por rios e riachos. Eram oleiros e viviam da sua indústria, mas também criavam gado e lavravam terras ribeirinhas. Um dia, guerreiros Bailundos, fugidos à ira do seu soba que, mesmo depois de lhes ter morto o chefe, não cessava de os perseguir, pararam no sopé do outeiro e intimaram os Nhembas a abandonarem a aldeia, porque esse lugar só podia ser morada de fidalgos, deles que eram filhos do chefe Sambo, morto na guerra. Medrosos, os pacíficos Nhembas desceram o monte e nesse dia os atabaques dos filhos do Sambo tocaram aos ventos altos da aldeia abandonada, e o povo fugitivo dançou o batuque dos mortos, para que a alma de sambo descansasse em paz.

 

Eram seis os filhos do soba Sambo, cinco rapazes, caçadores de elefantes e hipopótamos, e a moça Alemba, que os irmãos escolheram para rainha. Ali, ela fundou a libata e deu ao país conquistado sem sangue o nome de seu pai Sambo. Tempos depois, Alemba casou com um caçador Ganguela que ousara levantar o fogo das caçadas na planície do Sambos e depois agasalhara na aldeia do outeiro para nunca mais de lá sair, preso nos braços da dona da terra. Seguindo os passos desse jovem caçador, muitos Ganguelas seus amigos vieram morar no país do Sambo e nunca mais regressaram à terra de além Cubango. De outra banda, vieram guerreiros Galangues que trouxeram de presente a Alemba punhados de terra branca, que «é o símbolo da vida e preserva da morte». Ganguelas, Galangues e Sambos cruzaram-se entre si.

 

Alemba morreu de velha, mas ficou viva para sempre na memória e na saudade do seu povo. E treze sobas reinaram no país que ela fundou. Os filhos do último chefe foram educados numa missão católica e ganharam como baptismo nomes europeus. Mas não esqueceram os velhos deuses africanos. E nos momentos de desgraça, é para eles que se voltam, implorando aos «espíritos bons» que intercedam em seu favor junto desses deuses. E sempre que o soba encontra na libata uma serpente, o povo dá-se em sacrifício aos deuses, porque é a alma de Alemba que voltou à terra no corpo da serpente para exigir sacrifícios humanos. Então, os Sambos adoram a serpente. Corre o sangue do sacrificado e a serpente desaparece – e a alma de Alemba regressa ao seu mundo misterioso... O povo baila doidamente nos fadáros dos batuques e cantam-se velhas canções em louvor de Alemba, que é a alma do próprio povo... E a paz desce de novo sobre a terra que recebeu o sacrifício de sangue."

 

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27.02.15

Castro Soromenho - Nhári (I)


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Castro Soromenho (1910-1968), Nhári: O Drama da Gente Negra (1938).

 

Nhári, primeiro livro publicado por Castro Soromenho após a sua saída de Angola, onde nunca mais voltou, havia sido antecedido por duas outras curtas publicações do autor – Aves do Além (1934?) e Lendas Negras (Cadernos Coloniais, 20. Lisboa: Editorial Cosmos, 1936?), que vieram a ser integradas neste volume.

 

Galardoado em 1939 com o 2.º prémio da Agência Geral das Colónias, e, por sua expressa vontade, nunca mais publicado em vida do autor, este livro apresenta, numa primeira parte, cinco narrativas, intituladas O Último Batuque, Gando – O Feiticeiro!, Angústia, O Milagre do Ganga, e Nhári, e numa segunda parte, que ostenta o subtítulo Lendas Negras, cinco outras narrativas – Os Embaixadores à Côrte do Além, Terra da Amizade, Para Além da Vida, Aves do Além, e A Lagoa Maldita.

 

Em O Último Batuque narra-se o declínio do poder e da autoridade de um soba bângala, Xá-Congo, que veio a ser escravizado como capinge pela soba Mona-Capenda. Posteriormente libertado, apesar de voltar a reunir a sua antiga gente nunca mais recuperou a anterior dignidade, o que fora pressagiado pelas melembas que plantara na delimitação da sua nova senzala e que jamais folharam, acabando por se enforcar.

 

Gando – O Feiticeiro! enfatiza a impassibilidade de um velho que, perante o prenúncio de uma desgraça, posteriormente materializada na morte da sua filha, devorada por um jacaré, se refugia na liamba como único meio de suportar as fatalidades da vida. Contracenando com este "fumador de quimeras" encontramos um escravo luena que simbolicamente se liberta tocando no seu quissange uma "canção saüdosa e fatalista" que traduzia "o chôro eternamente dolente desta raça triste."

 

A fatalidade é novamente focada no conto Angústia, que nos apresenta uma variante do complexo de Édipo. A reescrita da tragédia grega, que deu origem a este conceito de psicanálise, surge aqui como forma de sublinhar que um escravo lunda, apesar de ter direito a um nome – Candala, não tem direito ao amor ou à família.

 

O Milagre do Ganga descreve a influência de um feiticeiro, Ganga, que ardilosamente sabe aproveitar-se das superstições de um soba, Quissueia, e do seu povo para consolidar o seu estatuto e receber a dádiva sacrificial da sobrinha do soba. Tal oferenda permitiu-lhe, assim, falar com os mortos e acalmar o espírito do falecido soba Muenha-Quinguri, que assombrava o seu sobeta Quissueia por este o haver enganado com uma das suas mulheres.

 

O quinto conto relata o trágico destino de uma menina de dez anos – Nhári, que é dada por seu tio maternal a um velho fumador de liamba. No entanto, o irmão de Nhári, um caçador quioco chamado Murique, tencionava dá-la a um ganguela. Perpetrando o assassinato do velho, com a ajuda do caçador Xassuana, inicia depois uma jornada, com este e com sua irmã, através de uma planície que parecia não ter fim. Ao longo da simbólica jornada – "Esta planície é imensa, dolorosamente imensa, e aquela árvore está só. (...) Ergue-se sôbre a sua própria dor, amarrada a silêncio profundo. Silêncio, silêncio, só silêncio. Antes gritasse!", Nhári é também entregue por seu irmão a Xassuana, o qual surge como alternativa para se tornar seu senhor caso o ganguela a venha a recusar.

 

O valor simbólico, ritual e erótico do batuque, aqui destacado em dois contos – O Último Batuque e O Milagre do Ganga, havia também sido particularmente tratado por António Botto (1897-1959), num poema, o segundo do Livro Terceiro – Piquenas Esculturas, das suas famosas Canções (http://blogdaruanove.blogs.sapo.pt/5377.html).

 

Num posterior artigo abordar-se-ão as cinco narrativas de Lendas Negras, transcrevendo-se agora os últimos parágrafos de Nhári:

 

"Nhári, débil criança de lindos olhos negros, cheios de dolência, sempre a olhar, perdidamente, para o infinito, pequenina escrava, talvez inconsciente da sua própria escravidão, – tu és o símbolo das mulheres da tua raça.

 

Sôbre a terra escaldante tombou a sombra da noite.

 

E ainda paira no ar e na vacuidade da vida da escrava aquela pregunta [sic] inútil e afrontosa:

 

– Queres, Nhári, ser mulher do Xassuana?

 

A criança, sempre com os olhos esquecidos em tristeza, que mais parecia boneca de ébano do que mulher para o trabalho rude da terra e fêmea obrigada a dar-se ao prazer sensual do seu senhor, marchava atrás dos homens que a iam mercadejar.

 

As três silhuetas desapareceram na noite."

 

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01.05.14

Castro Soromenho - Terra Morta (II)


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Castro Soromenho (1910-1968), Terra Morta (1961).

 

Conforme anteriormente referido (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/15623.html), o romance Terra Morta surgira mencionado com a nota "Não pode entrar no mercado" na lista de obras deste autor publicada no livro Calenga (1945).

 

Com efeito, a Editorial Inquérito, que viria a editar deste autor os volumes Calenga e Homens sem Caminho (1946), tentara publicar e distribuir logo em 1944 aquele romance.

 

O texto foi distribuído para leitura pela Direcção dos Serviços de Censura em 5 de Janeiro de 1945, recebido pelo censor que emitiu o parecer, o então major Ávila Madruga (Manuel José Ávila Madruga, c. 1894- c. 1969), em 19 de Fevereiro e proibido por despacho de 18 de Abril daquele ano.

 

Transcreve-se de seguida, integralmente, o parecer, constante do relatório 2805, subscrito pelo censor:

 

"Romance da vida africana no interior de Angola. Com episódios de pouco interêsse, descreve-se a vida dos pequenos funcionários civis nos postos administrativos e a vida nas aldeias indigenas do interior da colónia. Em tôdas as narrações transparece a existência precária e pouco dignificante dos pequenos funcionários e a miséria de vida primitiva e de abandono dos indigenas. Mostra-se a penuria da população negra, explorada e massacrada pelos brancos que só têm a única preocupação de cobrar impostos e recrutar homens para trabalhos nas minas, arruinando as povoações e reduzindo cada vez mais a maior desgraça a existência dos pobres indigenas.

 

Vê-se a vida ociosa e viciosa dos funcionários, os abusos e despotismo exercido sôbre os negros. 

 

Demonstra-se a escravatura exercida por brancos portugueses e evidencia-se a miséria dos velhos colonos que lutam sem auxilio a par dos negros que definham e emigram para outras colónias onde lhes dão terras a [sic] sementes sem terem de pagar imposto.

 

Pela péssima propaganda da nossa administração colonial, da triste vida dos nossos funcionários e do abandono e exploração, por nós, dos negros, com que, ao ler-se êste livro, se fica, sou de opinião que não deve ser autorizada a publicação dêste romance por deletério e contrário à nossa acção colonial."

 

Uma cópia digital deste relatório pode ser consultada aqui: http://ephemerajpp.com/2011/12/12/censura-relatorio-no-2805-18-de-abril-de-1945-relativo-a-terra-morta-de-castro-soromenho/.

 

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06.04.12

Castro Soromenho - Terra Morta (I)


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Castro Soromenho (1910-1968), Terra Morta (1961).

 

Como já foi referido anteriormente, este é um romance da década de 1940 que surgia referenciado na lista bibliográfica de Calenga (1945) com a seguinte nota – "Não pode entrar no mercado". Obviamente, este facto contradiz as declarações que afirmam ter esta obra sido escrita em 1949 (cf. http://sobrecs.wordpress.com/2012/03/10/susan-a-de-oliveira-terra-morta-perspectivas-da-historiografia-literaria-e-da-historia-social-de-angola/).

 

Em 1949 surgiu efectivamente, no Brasil, a primeira edição em português desta obra, a que se seguiu em 1956 a primeira edição francesa (http://sobrecs.wordpress.com/2011/07/16/jinga/), com tradução de Violante do Canto (n. 1923) e prefácio do consagrado antropólogo e sociólogo Roger Bastide (1898-1974). Depois de publicada em Portugal pela primeira vez em 1961, esta obra teve várias reedições nas últimas três décadas.

 

A autorização de publicação deste romance em Portugal, após quase duas décadas de proibição, não deixa de ser surpreendente. Afinal, em Fevereiro desse ano começara a sublevação em Angola, tendo a obra sido acabada de imprimir em Julho de 1961. Mais, o espaço ficcional da narrativa decorre no Camaxilo, terreola da Lunda-Norte, província encravada entre a fronteira e a província de Malange, a qual, por sua vez, confinava com as três províncias onde ocorrera a sublevação – Zaire, Uíge e Quanza-Norte.

 

Tendo uma visão sobre África completamente distinta da do regime, Castro Soromenho desenvolve aqui uma narrativa desassombrada sobre a realidade angolana.

 

É assim que a desencantada vila de Camaxilo surge como um microcosmos onde a sobrevivência no presente se cruza com a nostalgia do passado e a incerteza quanto ao futuro. Brancos, pretos e mestiços, administradores, velhos colonos, cipaios, capitas, sobas e negros das senzalas movem-se à volta dos dois bairros da vila, num opressivo clima de tensão e distensão.

 

À nostalgia do passado, da abundância da borracha e do marfim para os negociantes brancos, contrapõe-se no presente a insatisfatória cultura do algodão e o declínio do comércio. Para os sobas, e a população das senzalas, a liberdade passada contrapõe-se à obrigatoriedade de pagar impostos e à obrigatoriedade de os homens prestarem um ano de serviço nas minas da companhia, aquela que viria a ser a Diamang.

 

As inundações, a fome e as mortes que perpassam pelo romance culminam simbolicamente com o incêndio do edifício da administração e a antes anunciada mudança da sede da circunscrição para Caungula. Fim de ciclo. Terra morta.

 

 

Castro Soromenho, tendo à sua direita o escritor José Cardoso Pires (1925-1998), o fundador da editora Ulisseia (1948), Joaquim Figueiredo Magalhães (1916-2008) e o escritor Manuel da Fonseca (1911-1993). (Imagem retirada de: http://sobrecs.wordpress.com/2011/09/25/o-diario-de-lisboa-na-morte-de-castro-soromenho/.)

 

Deste romance transcrevem-se alguns parágrafos sobre a época das chuvas e as inundações:

 

"O fio de água de há três meses, sumindo-se no fundo do vale sob o verde sombrio da floresta, tornou-se em pouco tempo rio caudaloso, rumorejante, cavando fundo a terra das margens e arrancando pela raiz árvores que carrega no dorso ao longo da selva para a estepe do Cuilo.

 

O homem nu não se afoitava com a sua almadia a ganhar caminho das aldeias ribeirinhas. E os bichos há muito deixaram de procurar os seus bebedoiros da quadra do cacimbo, à sombra da floresta que cobre o vale.

 

Os homens e os bichos abandonaram, medrosos, a fúria do rio. Só a floresta lhe oferece luta, obrigando-o a revolver-se no labirinto das suas árvores e a desviar-se aqui e ali das barreiras de cipós. Enfurecido, o rio atira-se contra a floresta, que o tenta apertar no leito, invade-lhe as terras sombrias, abre-lhe rasgões por onde estende os seus braços, envolvendo-a e pondo a nu raízes seculares. E segue, bramindo, para a planície que logo se lhe oferece, dando-lhe largas para se espraiar. É ali, na terra nua de horizontes desolados, que se lhe quebram as energias. A sua fúria abranda pouco a pouco, deixa-se de ouvir o seu bramido, e os despojos que ganhou, em dura luta, à floresta, vão ficando pelo caminho, na planície alagada para onde  fogem os peixes atormentados pela impetuosidade da corrente. E segue, brando, no seu leito natural, através da planície, onde as águas paradas ao longe vão enegrecendo sob as asas das aves que descem em voos rápidos para apanharem pequenos peixes.

 

Ao fundo da estepe, com uma mancha negra de floresta na linha do horizonte, o rio entra num tremedal, desaparece sob os lodos verdes e negros, com flores vermelhas, amarelas e azuis a perfumarem o céu baixo e sombrio, para surgir mais adiante, junto à floresta, por onde abre caminhos tortuosos que o levam para a boca de outro rio."

 

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23.02.10

Castro Soromenho - Homens sem Caminho


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Capa de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957).

 

Castro Soromenho (1910-1968), Homens sem Caminho (1946).

 

O conflito entre Lundas e Quiocos que se desenvolve ao longo da narrativa vem sublinhar a inutilidade da resistência àquilo que parece ser o destino de cada um destes povos – o domínio, no caso dos Quiocos, e a submissão, no caso dos Lundas.

 

Mas, em território Lunda, o conflito é também um conflito interior, de um proscrito que regressa ao seu povo e é impotente para o salvar da ameaça dos Quiocos, e um conflito exterior, colectivo, que sublinha a decadência dos Lundas. A redução à escravatura vem confirmar essa decadência e selar a fatalidade do seu destino.

 

Djàlala, que tinha sido um proscrito e agora aparecia como um messias que viria salvar os Lundas, nada pode fazer contra os Quiocos nem contra o destino, que se anunciava através de pequenos sinais de mau-agoiro, de pequenas contrariedades, de pequenos feitiços com devastadoras consequências. O Djàlala do final da narrativa é uma personagem acabrunhada e dominada pelo destino, tendo perdido a personalidade que inicialmente demonstrava:

 

"A história da fuga do Djàlala do chão dos Bangalas, encheu todo o sertão. Os povos desgraçados e todos os escravos contavam-na ao redor das fogueiras nas noites brancas de luar. E os deserdados, em todas as senzalas lundas além-Caluango, o amaram. Gemeram os quissanges cantando o seu belo feito. E na boca das mulheres andava a sua vida feita em canção. A sua aventura ficara na saudade e no sonho de todos os infelizes. Ninguém, fora da sua aldeia e da taba do soba Cassange, o tinha visto. As mulheres aformosearam-no com a imaginação, e os escravos envolveram-lhe a vida em mistério. E  o mistério volveu-se em lenda e a lenda em canção. Mas no Caluango, no seio da sua gente, e nos povoados vizinhos, a sua história era bem diferente. Toda a gente o olhava com olhos carregados de medo. Os escravos temiam-no, porque ele ali era sobeta, senhor com poderes de mandar chicotear os vassalos e vendê-los como escravos, e os sobas e conselheiros detestavam-no. Só as mulheres lhe queriam bem."

 

Com esta obra, Castro Soromenho obteve o primeiro prémio no concurso promovido em 1942 pela Agência Geral do Ultramar. Para um breve comentário sobre outro livro de Castro Soromenho, Calenga (1945), onde se apresentam duas novelas, consulte: http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/2043.html

 

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11.02.10

Castro Soromenho - Calenga


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Capa e ilustrações de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957).

 

Castro Soromenho (1910-1968), Calenga (1945).

 

Um dos maiores prosadores da literatura colonial portuguesa, Castro Soromenho legou-nos uma obra sui generis, porque centrada quase exclusivamente nas temáticas e nas narrativas perspectivadas segundo as tradições e a cultura dos povos nativos de África.

 

Numa época em que no nosso país ressurgia e se consolidava politicamente o conceito de império colonial e os escritores se extasiavam perante a grandeza de África e todas as potencialidades que esta apresentava para a colonização, Castro Soromenho extasiou-se perante as tradições de sociedades que lhe pareciam estar ameaçadas pela cultura ocidental e perante a sabedoria dos povos dessas sociedades, como os "lundas, êsses poetas da planície". 

 

Castro Soromenho ousou ainda levantar uma voz dissonante da voz do regime. "Ama, 'mãe negra', é essa saüdade, velha de mais de trinta anos, que invoca a tua memória ao findar êste livro dos homens da tua raça infeliz.", afirma o autor no seu preâmbulo a este livro. Pagou essa sua opção consciente e sentida de homenagem aos povos negros de África com o silêncio oficial sobre a sua obra. E com a proibição ou censura da maioria dos seus trabalhos. Terra Morta, um romance da década de 1940, surge referenciado na lista bibliográfica de Calenga com a seguinte nota – "Não pode entrar no mercado", verificando-se a sua publicação apenas posteriormente, já na década de 1960. Esta obra, em particular, teve várias reedições nas últimas três décadas.

 

Duas novelas integram o livro Calenga, 'Calenga e a lenda dos rios do amor e morte' e 'Lueji e Ilunga na terra da amizade'. A primeira narra a história de Calenga, o menino que cresceu para ser soba dos calambas,  e o seu encontro com os cassongos. A segunda apresenta-nos a história da criação do país dos lundas, "como êles a contaram a Henrique de Carvalho [1843-1909], o grande explorador da Lunda, e eu a ouvi nos seus sertões", conforme diz o autor.

 

Dois textos cujas narrativas fluem naturalmente, mostrando que uma aparente simplicidade discursiva pode ser sinónima de excelente literatura.

 

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05.02.10

Reis Ventura e a Literatura Colonial Portuguesa


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Fotografia da década de 1920 com a seguinte legenda, manuscrita por Reis Ventura, no verso: "Creio que já lhe falei no passeio que demos todos os do curso superior a Caminha, de barco. Foi muito interessante. Como vê estamos todos à secular porque a Portugal não podemos ir de hábito. Este retrato foi-nos tirado pelos padres Jesuitas da Guardia no claustro do seu convento. Eu sou esse trampolineiro marcado com uma cruz. Reis". Na frente, no canto superior esquerdo, uma dedicatória parcialmente ilegível: "A meu irmão (...) do Vasco (...)".

 

 

Manuel Reis Ventura (1910-1988) foi um dos escritores que integrou aquela que se pode classificar como a segunda fase da literatura colonial portuguesa de inspiração africana, no século XX. A primeira fase, representada por escritores como Henrique Galvão (1895-1970), Julião Quintinha (1885-1968) e Castro Soromenho (1910-1968), desenvolveu-se entre as décadas de 20 e 40 coincidindo predominantemente com a recuperação do conceito de império colonial, preconizado pelo Estado Novo. A segunda fase veio a coincidir com o início da autodeterminação dos países francófonos de África, já na década de 50, e com a sublevação nas colónias portuguesas, na década seguinte. Em Angola, esta fase cristalizou-se à volta do Grupo da Província, um conjunto de artistas e escritores que contribuíram para o Suplemento Literário do jornal "a província de Angola" [sic], logo a partir da década de 40.

 

 

  

Luuanda, 1.ª edição brasileira (1965), à esquerda, e 3.ª edição portuguesa (1974).

 

 

Durante a década de 60, este grupo, apoiado tacitamente pelo governo e pela Agência Geral do Ultramar, veio a ser contestado, na sua literatura comprometida com  o regime, por escritores de oposição ao colonialismo e ao Salazarismo, como José Luandino Vieira (pseudónimo de  José Vieira Mateus da Graça, n. 1935). Um autor que já se notabilizara na década de 50 através da sua colaboração nas revistas Mensagem e Cultura, veio a ser galardoado em 1965 com o prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores pelo seu livro Luuanda (1963). Um prémio que se revelou controverso pela oposição que mereceu das instituições governamentais da época e pela evidente contestação ao regime que tal atribuição representava, visto Luandino Vieira ser então um preso político.

 

 

Cafuso (1956), capa de Neves e Sousa.

 

 

Em plena década de 60, devido à guerra, o compromisso ideológico de Reis Ventura para com o regime acentuou-se, vindo a sua literatura a ser fortemente condicionada por esse facto. A sua prosa passou a reflectir aspectos panfletários e dogmáticos, características já anteriormente sugeridas na personagem Bolchevique de A Romaria, congregando o reconhecimento do regime e dos defensores do sistema colonial. Nesta transição perdeu-se, contudo, a simplicidade, a clareza e a atracção de uma prosa corrida que o autor desenvolvera nos anos 50. Assim, talvez as suas obras literariamente mais conseguidas tenham sido precisamente as dessa década, merecendo particular destaque os romances que constituem a trilogia Cenas da vida em Luanda – Quatro Contos por Mês (1955), Cidade Alta (1958), Filha de Branco (1960), bem como o romance parcialmente autobiográfico Cafuso (1956). Nesta última obra, o narrador intradiegético relata a sua passagem por Tuy, a sua preparação sacerdotal e o abandono da vocação. Reis Ventura efectuara esse mesmo percurso, tendo embarcado para Moçambique em 1934, de onde transitou para Angola, três anos depois. Deste último romance, transcrevem-se algumas passagens que retratam de um modo divertido a vocação sacerdotal da personagem adolescente:

 

"O meu nome é José da Silva Taveira e tenho alguns estudos. Cheguei mesmo a cursar Filosofia com os Padres Franciscanos do Colégio de Santo António, na cidade fronteiriça de Tuy. Eu já lhes conto como isso aconteceu."

 

(...)

 

"Entrei, muito acanhado, na pobre saleta, famosa em toda a aldeia pela sua mesa de centro e alguns móveis desirmanados que meu pai trouxera do Brasil. O sr. Padre Inocêncio lá estava, alto e encorpado, com a testa rompendo até à coroa por entre duas farripas altas de cabelos, a fitar-me com os olhos bondosos, por baixo das sobrancelhas espessas. Naquela sua voz sonora de prègador de nomeada, perguntou-me logo, sem rodeios:

– O menino quer ir para o colégio?

Colhido de surpresa, derivei para minha mãe um olhar indeciso.

– Vá, responde! – encorajou ela.

Na minha consciência infantil, entendi que me destinavam para padre. Ràpidamente, corri os olhos cobiçosos pela grande fila de botões que o austero franciscano ostentava na batina. Lembrei-me dos puxões de orelhas que tinha apanhado pela mania de tirar à braguilha das calças o material para o jogo do botão. E, no meu íntimo, concluí:

– "É furo!"

O sr. Padre Inocêncio, bem longe dos meus silenciosos cálculos, ergueu-me o queixo com dois dedos amáveis e, olhando-me com bondade, proferiu:

– É um colégio muito grande, numa cidade muito bonita. Queres ir?

Mirei-lhe novamente os botões da batina. Caramba! Eram mais de vinte, alinhados, pretos, luzidios... E, resolutamente, respondi:

– Eu quero, sim senhor."

 

 

Engrenagens Malditas (1964), capa de António Lino (1914-1996).

 

 

A propósito da controvérsia que envolveu a atribuição do prémio do SPN em 1934, transcreve-se um excerto da entrevista que Reis Ventura concedeu ao jornal "a província de Angola" em 10 de Junho de 1970:

 

"– Sabemos que ganhou o Prémio Antero de Quental em concorrência com Fernando Pessoa...

– Não é verdade! E sinto-me envergonhado sempre que se fala nisso. Aconteceu apenas que a "Mensagem" de Fernando Pessoa, apresentada como "a Romaria", ao primeiro concurso literário do Secretariado da Propaganda Nacional, em 1934, não tinha o mínimo de cem páginas, exigido pelo Regulamento para as obras concorrentes ao Prémio Antero de Quental. Mas, ao atribuir-lhe o Segundo Prémio (apenas para respeitar a letra do Regulamento), o Júri proclamou o valor excepcional da "Mensagem" e declarou equiparados  os dois prémios da Poesia. Perante tão clara atitude, até eu, que era então ainda um garoto cheio de pequenas vaidades, compreendi que o Primeiro Prémio de Poesia, em 1934, estava conferido, de direito e de facto, a uma obra de génio, perante a qual os meus versinhos de rapaz nem sequer existem."

 

Estas considerações tinham sido já consubstanciadas estrutural e conceptualmente em A Grei (1941), obra que em plena guerra colonial ressurgiu com o título Soldado Que Vais À Guerra (1964). Nesta reedição ligeiramente modificada, Reis Ventura passou a apresentar como composições introdutórias quatro poemas que anteriormente surgiam no final do livro e cujos títulos e conceitos são obviamente evocativos da Mensagem – Viriato, Aljubarrota, O Sonho do Infante, 1640.

 

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