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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

16.01.25

Revista Cultura (V)


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O número 39 desta revista apresenta o conto Titia, de Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002). Num registo coloquial próximo da oralidade, esta narrativa apresenta-nos o retrato de uma viúva que abandonou Cabo Verde, onde apenas um dos três filhos permaneceu, para viver sozinha em Lisboa, sem quaisquer amigos ou confidentes a não ser José, o narrador.

 

Embora ainda não tenha sido reproduzido o conto deste autor, intitulado Resignação, publicado em 1958 no número 14 desta mesma revista, número já aqui abordado, transcrevem-se de seguida os primeiros parágrafos de Titia, sem mais informações adicionais, uma vez que já foram anteriormente referidos alguns dados bio-bibliográficos sobre o escritor (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/3552.html):

 

"Titia nem teve paciência... Recado num dia, bilhete no outro... Caramba! Nem que fosse sangria desatada! É preciso compreenderem que eu nem sequer sou parente dela. Sim senhores... Nem filho, nem sobrinho, nem primo, nem nada. Chamo-lhe Titia por amizade.

 

Titia não é má pessoa, não. Só que de vez em quando tem suas rabujas... Hoje os seus filhos estão longe. Ela vive cá em Lisboa. Viver «cheio de buracos vazios» porque «dinheiro é pouco e velhice ingrata»... Veio para aqui com destino à Argentina. Zulmira, a filha mais velha, vive lá. Mas depois levantaram-se impedimentos, «assoprou aquele ventinho que tem de pegar toda a criatura sem sorte» e ela não seguiu. Foi resolvido que ela ficasse. Voltar para Cabo Verde era asneira... Nhônhô, o que está em Moçambique, foi de opinião que mais vale viver mal em Lisboa do que viver bem em S. Vicente. Sim, porque Titia já viveu bem... «Quem a visse hoje em dia com o seu balaio de compras debaixo do braço não dizia que estava ali uma quintanista, e das antigas...» Titia viveu bem enquanto o marido foi vivo. Negociante de baia. Ela mesma fazia os bolos para vender na Pracinha do Liceu. Foi assim que compraram a sua casinha no Lombo-de-Trás e puderam educar os filhos. Nhônhô tirou o sétimo ano e concorreu para Moçambique. Zulmira também estudou. Essa é que embarcou para a Argentina. Lela não quis estudar. Fez o terceiro ano e empregou-se na companhia Madeira. Parodista e mulherengo dos bons... Titia às vezes lastimava-se de Lela não ter o 7.º como Nhônhô.

 

– O que tu queres é esta vidinha de cachorro vadio...

 

Lela ria, ria e não dizia nada. O riso de Lela é sonoro e sacudido.

 

Pois, para Titia o bom tempo durou enquanto durou o marido. Homem é que é tecto de uma casa, já se vê. Depois começou a dispersão. Nhônhô casou, Zulmira foi para a Argentina e Lela tirou uma rapariga de casa. Que é que Titia ia fazer sòzinha na casa vazia? Sim. Que é? Foi então que ela resolveu embarcar também. Aqui em Lisboa aguentava-se com o dinheirinho que os filhos lhe mandavam. Filhos... vírgula... Só Nhônhô lá de Moçambique achava jazigo de lhe mandar qualquer coisa. Não era muito, já se sabe, pois, como vocês calculam, um homem casado tem de olhar para o futuro da mulher e dos filhos. Quanto aos outros Zulmira de vez em quando mandava roupas usadas e Lela só escrevia para dizer: «Mamãi do meu coração quando aprecer portador de confiança mando você uma boa encomenda. Seu filhinho que lhe estima do fundo da alma e que lhe pede a bênção Manuel». Titia ben se amofinava com o que ela chama «ingratidão familiar».

 

– Este moço não me escreve uma cartinha com tripa.

 

Tripa na linguagem de Titia é dinheiro."

 

© Blog da Rua Nove

 

 

29.12.23

Antologia da Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea (I)


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A presente antologia, com selecção de Baltasar Lopes (1907-1989), introdução de Manuel Ferreira (1917-1992) e comentários de António Aurélio Gonçalves (1901-1984), apresenta um conjunto de contos e excertos de romances da autoria de nove escritores – António Aurélio Gonçalves, Baltasar Lopes, Francisco Lopes (1932-2001), Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002), Henrique Teixeira de Sousa (1919-2006), Jorge Barbosa (1902-1971), Manuel Lopes (1907-2005), Pedro Duarte (Pedro Gabriel Monteiro Duarte, 1924-2016) e Virgílio ("Djila") Pires (1935-1985).

 

Prosseguindo com o critério de mencionar em primeiro lugar autores cuja obra ainda não tenha sido transcrita neste espaço, destaca-se hoje o trabalho de Francisco Lopes, representado nesta colectânea com dois contos – Chuva de Agosto, que havia sido publicado no Boletim Cabo Verde, em Outubro de 1958, e O Ourives (inédito).

 

Francisco Lopes frequentou o liceu no Mindelo, licenciando-se posteriormente em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa. Regressou em 1959 a Cabo Verde, onde foi docente no Liceu Gil Eanes até 1960, e, a partir desse ano, na Escola Industrial e Comercial do Mindelo, onde veio a desempenhar os cargos de subdirector, até 1974, e director, até 1988.

 

Uma vez que havia frequentado também o curso de Direito, exerceu ainda as funções de Procurador Geral da República na comarca do Barlavento, entre 1961 e 1963, e, entre 1964 e 1974, as de juíz substituto no Tribunal de S. Vicente. Depois da independência de Cabo Verde, veio a ser director regional de educação para as ilhas do Barlavento e presidente da Câmara Municipal de S. Vicente. Entre diversos outros cargos, foi também director da Rádio Barlavento.

 

Em 1960 co-organizou, com Baltazar Lopes, o número 9, o último, da revista Claridade, onde publicou o conto O Resgate. No cinquentenário da mesma revista, celebrado em 1986, contribuiu para uma edição comemorativa, extra-série, com o conto Bisca Interrompida.

 

Do conto Chuva de Agosto, traduzido para língua inglesa em 1972, aquando da sua publicação na África do Sul, e para língua russa em 1983, aquando da sua publicação na URSS, transcrevem-se os primeiros parágrafos:

 

"Uma atmosfera pegajenta, como só acontece nos dias que precedem as grandes chuvas de Agosto, amortalhava a ribeira. Parecia que o céu se unia à terra, àquela terra boa e generosa, num abraço de calor molhado, sufocante, que vinha de um ror de nuvens carregadinhas de humidade que cavalgavam por cima do vale, como alimárias desenfreadas, semm deixar cair pingo d'água. Um relâmpago cortou o céu em requebros de centopeia, seguido de um grande estrondo. O trovou reboou pela ribeira, cresceu, ganhou força, e, entrechocando-se pelas vertentes, desabou sobre a povação. Lá longe as cumieiras da Rocha Grande devolveram o eco num rugido sinistro.

 

Simão Toca estava sentado no alto do cabeço. Olhou para o céu, semicerrando os olhos feridos pela intensa claridade. Quedou-se assim por algum tempo, vasculhando as nuvens com a vista, a abanar a cabeça devagarinho, devagarinho, como quem escuta uma conversa com atenção. Aquilo era linguagem de chuva de Agosto que não tardava a cair. O que o aborrecia era a questão do dique. Tinha feito uma plantação mesmo a meio da ribeira e a única esperança de a salvar era o dique ficar pronto antes de as-águas. Simão Toca fez um sinal a André, que andava perto, metido numa moita. André aproximou-se.

 

– Boas-horas, nhô Simão – disse numa voz despreocupada. Simão Toca mal lhe respondeu e continuou ali especado, numa posição característica, pernas afastadas, mãos debaixo do queixo, apoiadas numa bengala de nós grossos que se espetava verticalmente no chão, direita como fio de prumo. Simão Toca repuxou os olhos para cima e encarou André.

 

– Então, esta obra no dique fica pronta antes da chuva de Agosto, não? – André rodava o boné entre as mãos.

 

– Trabalho vai indo, nhô Simão, vai indo – respondeu. Dificuldade é o dique ter de passar dentro da propriedade de Djoquinha de Nhuto, no lado norte. Simão Toca mal ouviu a resposta. Levantou-se de repente, como que sacudido por uma ideia luminosa e apontou para a ribeira.

 

– Olha ali, André, olha-me para aquele milheiral lá em baixo. Não notas nada? André fez um aah! inexpressivo, como quem não conseguia perceber. Ali moço – ali no caminho do dique. É aquela rocha, moço, é aquela rocha. Basta um fogo de dinamite para a deitar abaixo. Desviamos a rota da ribeira e nem é preciso acabar o dique no lado norte. André só então percebeu para onde Simão Toca apontava. Olhou para ele, olhou para a rocha, voltou a olhar para ele e arriscou numa voz hesitante:

 

– Mas nhô Simão aquele milheiral é já dentro da propriedade de Djoquinha de Nhuto e se a gente der fogo ele não vai ficar contente. Pode até dar contenda judicial.

 

Simão Toca voltara a sentar-se. Deu uma gargalhada e estendeu o braço para André.

 

– Qual contenda, qual quê. Eu tenho Djoquinha de Nhuto dentro da minha mão. Assim – disse – carregando na última sílaba e fechando o punho num gesto significativo. Dentro da minha mão – ouviste? André pediu licença e afastou-se lentamente. De longe Simão Toca ainda lhe gritou:

 

– Passa pela ribeira e põe os homens a trabalhar bem. Quero o dique pronto antes da chuva de Agosto."

 

© Blog da Rua Nove

12.09.23

Revista Cultura (I)


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Esta revista, cuja publicação se iniciou em 1956, tinha como subtítulo Revista Portuguesa de Educação Popular, parecendo querer evocar, de modo inevitavelmente restrito, o princípio da generalização da cultura para a educação das massas, numa tradição já anteriormente promovida pela revista Seara Nova (fundada em 1921) e entretanto seguida, também, por algumas editoras como a Cosmos (a famosa Biblioteca Cosmos foi lançada em 1941) ou a Inquérito (fundada em 1938). 

 

Tal como se verifica nesta capa, cada número apresentava uma elevada e heterogénea quantidade de textos, os quais, estando limitados às quarenta páginas da revista, têm como inevitável consequência uma concisão dos artigos, que tendem a ser demasiado generalistas e cujos conteúdos roçam, por vezes, a superficialidade.

 

Dirigida por João Alberto Frazão de Faria (datas desconhecidas), a revista tinha no seu quadro colaboradores provenientes de diferentes áreas profissionais, como o economista Afonso Howell (datas desconhecidas), o médico A. M. Estanco Louro (datas desconhecidas), o advogado e escritor Geraldo Bessa Victor (1917-1985), o engenheiro Ilídio Alves de Araújo (1925-2015), o pintor José Júlio Andrade dos Santos (1916-1963), o filólogo José Pedro Machado (1914-2005) ou o escultor Martins Correia (1910-1999).

 

Neste número anunciam-se poetas de Cabo Verde, que são Aguinaldo Brito Fonseca (1922-2014), com o poema Noite, e Nuno Miranda (1924-2022), com o poema Recado, mas surge também outro autor cabo-verdiano, Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002), com o conto Resignação.

 

Transcreve-se hoje o poema Recado, de Nuno Miranda, colaborador de segunda geração da revista Claridade, que até àquela data ainda não lançara qualquer livro mas haveria de vir a publicar os volumes Cais de Ver Partir (1960), Cancioneiro da Ilha (1964) e 40 Poemas Escolhidos (1974), no âmbito da poesia, e Gente da Ilha (1961), Caminho Longe (1974) e Cais de Pedra (1989), na ficção.

 

Poema marcado pela "sôdade", mais do que pela dureza da vivência e sobrevivência no quotidiano do arquipélago, traduz o sentimento do desterrado ansiando por um intangível locus amoenus, que tanto é o seu passado como a memória da sua vida enquanto ilhéu, num lirismo quase onírico que é também marca identitária do movimento claridoso.

 

RECADO

 

Quando aportares

dá-lhes notícias de mim nesta cidade.

 

Diz-lhe [sic] da voz surda estremecendo

e leve e tonta no meu peito, como se nada fora

ao vento que se escapa a este céu onde viceja um cravo,

a flor do meu destino.

 

Diz-lhe [sic] que vou-me às vezes da noite roxa

pelos subúrbios de tons de calmaria

na ronda de lembranças já mortiças

mas, velhas cicatrizes não saradas,

ai de mim!...

 

Não encontro

as ruinhas serpeando pela minha intimidade

o limo nos beirais das ruas do porto

o sonho de mar alto em cada olhar ficado

não vejo

a casa velha do terreiro alto onde ancoravam

os nocturnos das viagens de arrabalde.

 

Que é dos traquetes tombados e dos botes carcomidos?...

 

Só a lembrança de outrora

na flor deste destino.

 

Se te falarem de mim quando aportares

diz-lhes que vai ao longe na cidade a estibordo

a nave desta carne macerada

 e a asa de minha alma, ao céu aberta...

 

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17.02.10

Gabriel Mariano - O Rapaz Doente


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Gabriel Mariano (pseudónimo de José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002), O Rapaz Doente (1963).

 

As publicações Imbondeiro, com sede em Sá da Bandeira (actual Lubango), Angola, constituíram um marco particularmente importante na edição da literatura colonial – revelaram uma diversidade espantosa de novos autores e publicaram as suas obras independentemente de serem, ou não, afectas ao regime. A 1.ª Canção do Mar e Duas Histórias de Pequenos Burgueses, de Luandino Vieira (pseudónimo de José Vieira Mateus da Graça, n. 1935), foram publicadas na colecção Imbondeiro, dirigida por Garibaldino de Andrade (1914-1970; será referido em breve na secção autógrafos) e Leonel Cosme (n. 1934).

 

Esta colecção com mais de seis dezenas de títulos, apesar de coordenada a partir de Angola, divulgava autores de todas as colónias portuguesas em África e também do Brasil. A mesma editora publicava ainda as colecções Dendela (contos para crianças), Imbondeiro Gigante (contos de autores africanos, brasileiros e portugueses da metrópole), Livro de Bolso Imbondeiro, Mákua (poesia) e Primavera (cadernos didácticos).

 

Gabriel Mariano, um autor de Cabo Verde formado em Direito na Universidade de Lisboa, já tinha publicado na revista Claridade e na colecção de poesia Mákua quando este conto foi lançado. Posteriormente, surgiram 12 Poemas de Circunstância (1965), Louvação da Claridade (1986) e Ladeira Grande – Antologia Poética (1993). Na ficção, publicou Capitão Ambrósio (1975) e Vida e Morte de João Cabafume (1976).

 

O Rapaz Doente é um conto que relata um episódio na vida de Júlio, rapaz da Praia, que se desloca a S. Vicente a fim de obter cura para a sua doença. Abordando retrospectivamente as condições quase esclavagistas a que os trabalhadores de S. Tomé (onde a personagem diz ter começado a sua doença) eram submetidos, o conto evolui para a solidão e abandono a que os doentes pobres acabavam por ser entregues.

 

Uma narrativa centrada na tristeza, na impotência e na aceitação resignada e fatalista do destino. Um destino que parecia emsombrar toda a vida dos pobres em Cabo Verde.

 

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