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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

04.03.24

Novos Contos d' África (I)


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Novos Contos d' África (1962).

Capa de Manuel de Resende (1908?-1977?).

 

Esta segunda antologia de contos da colecção Imbondeiro, que sucedeu à publicada no ano anterior, apresenta obras de Alfredo Margarido (1928-2010) – A Osga, Artur Carlos Pestana (n. 1943)  As Cinco Vidas de Teresa, Djamba Dalla (pseudónimo de Dulce Ferreira Alves Mendes de Vasconcelos, n. 1927) – Terei Eu Perdão?, Henrique Abranches (1932-2004)  Sangue como Chuva Seca, Henrique Guerra (n. 1937) – Virgínia Voltou, Horácio Nogueira (n. 1925)  Chilombo, Ingo Santos (Arnaldo Santos, n. 1936) – Joana de Cabo Verde, Julieta Fatal (datas desconhecidas)  Uma Velha que Tinha um Gato..., Luandino Vieira (n. 1935) – Os Miúdos do Capitão Bento Abano, Maria Perpétua Candeias da Silva (datas desconhecidas)  Escrava, Orlando Távora (pseudónimo de António Jacinto, n. 1924) – Vôvô Bartolomeu, Pedro Sobrinho (n. 1936) – Terra de Sol, e Reis Ventura (1910-1988) – O Drama do Velho Cafaia, conjugando num único volume a produção de dissidentes e escritores afectos ao regime do Estado Novo.

 

Tal opção editorial é sublinhada pelos editores, Garibaldino de Andrade (1914-1970) e Leonel Cosme (1934-2021), que declaram no seu preâmbulo a este volume – "Em Literatura – como noutras coisas – há quem não pense da mesma maneira, e a esse tipo de liberdade que preferimos, por não dar ensejo a dogmatismos, costumam chamar nomes feios. São os riscos próprios dos que não assinaram pactos nem tratados, dos que não crêem que um deus valha mais ou menos do que outro deus, dos que concluíram para si próprios que toda a espécie de hermetismo ideológico é um atentado contra a liberdade de pensamento – o mais sagrado direito do escritor."

 

O compromisso desta linha editorial torna-se evidente quando, nesta colectânea, coexistem narrativas que ecoam as sublevações e os massacres de 1961, em contos como Terei Eu Perdão? ou o Drama do Velho Cafaia, cujos enredos assentam na violência física e nas angústias e traumas decorrentes destes confrontos, junto da obra de um autor como Luandino Vieira, contestário do regime que, precisamente desde 1961, se encontrava encarcerado por motivos políticos.

 

Continuando também o compromisso da Imbondeiro em promover as artes plásticas como complemento das suas publicações, esta colectânea apresenta cinco ilustrações de diferentes artistas – duas de Fernando Marques (1934-2017),  duas de João Manuel Mangericão (1936-2022) e uma de Luandino Vieira.

 

 

Ilustração de Luandino Vieira para o conto Os Miúdos do Capitão Bento Abano.

 

O conto de Luandino Vieira surge na continuidade das tendências temáticas anteriormente patentes em A Cidade e a Infância (1960), as quais haveriam de voltar a surgir nos três contos apresentados em Luuanda (1963), como a vivência nos bairros da periferia urbana, a memória e a infância.

 

Sobre Luandino Vieira, refere a breve nota presente neste volume: "Luandino Vieira é pseudónimo de José Graça. Nasceu em Luanda em 4 de Maio de 1935 e é empregado comercial. Colabora em várias publicações angolanas. Representado nas colectâneas «Contistas Angolanos» e «Poetas Angolanos». Publicou «A Cidade e a Infância», contos, 1960. Colaborou nos n.ºs 14 e 23 da «Colecção Imbondeiro»".

 

De Os Miúdos do Capitão Bento Abano transcrevem-se, então, os primeiros cinco parágrafos:

 

"Alcunha, quando a gente tem, tem por alguma razão. Esta opinião sustentava sempre que o acaso me juntava com Zeca Bunéu e Carmindinha, recordando Xoxombo. Tunica nunca mais esteve presente nessas reuniões, a vida levara-a para a Europa, com seu jeito de cantar rumbas e sambas. Menina-perdida, dizia para nós sá Domingas; a vida é grande e não são só as palavras que chegam para mudá-la, justificávamos nós. Carmindinha silenciava, não punha opinião, mas sabíamos que lhe era dolorosa a recordação da irmã Tunica.

 

Nossas reuniões eram, às vezes, em casa de sá Domingas, quando eu namorava Carmindinha. Zeca Bunéu vinha depois, com seu assobio-de-bairro, chamar-me para o café, mas acabava sempre por ficar na conversa. E com sá Domingas, já velha de cabelos brancos e Bento Abano ainda lendo o jornal sem óculos, calado no seu canto, quantas vezes não recordávamos! Invariável, porém, a presença de Xoxombo em nossa conversa, emboras as lágrimas  corressem pelo carão negro e já muito enrugado da mãe. Carmindinha contava, sempre igual, sua versão de alcunha de Xoxombo. E a defendia, séria. Zeca Bunéu, com sua maneira de contar as coisas, escolhia a versão mais conhecida, a de mais malandragem, aquela que servia seu feitio de menino malandro mas bom, dado a contar histórias à sua maneira. Eu não emitia grande opinião. Gostava, é verdade, de ver Zeca Bunéu, com grandes gestos e risadas, os olhos muito grandes piscando, contar a história na sua versão. Mas olhava com amor para Carmindinha, às vezes zangada, defendendo o irmão. Só quando sá Domingas começava a chorar pela recordação que lhe fazíamos e Bento pigarreava na sua cadeira de bordão, eu interrompia. Mal, confesso. Insistia apenas no facto real: alcunha, quando alguém tem, há uma razão e se toda a gente referia Xoxombo da mesma maneira, pouco importava a a origem ou versão da alcunha.

 

Depois saíamos. Carmindinha vinha connosco, deixava que eu lhe apertasse os seios pequenos debaixo do kimono, ao segurá-la para o beijo à porta. E, com Zeca Bunéu, de noite, ia quase sempre passear à toa, pela nossa cidade adormecida.

 

Hoje, dia dois de Novembro, encontrei Carmindinha à saída do Cemitério Velho e viemos para baixo, no maximbombo da linha dois. Foi este encontro o primeiro depois de uma zanga que durou anos e nele não precisávamos mencionar Xoxombo: esteve sempre connosco, no fato preto e no cheiro enjoativo que as flores-de-mortos deixam nas pessoas. A sua história, desde essa hora, impôs-se. O tempo diluiu pormenores, esbateu insignificâncias, mas iluminou o que importa.

 

Afastado de Carmindinha todos esses anos, subtraí-me à sua influência, à sua bondade na defesa do irmão. E, sem Carmindinha presente, eu e Zeca Bunéu nunca mais falámos de Xoxombo. Sentir-me-ia culpado se não contasse a história. Talvez agora, com os elementos que os anos depositaram em mim, vindos das mais variadas versões, possa ser fiel à história de Xoxombo. Se não conseguir, a culpa não é dele, nem da aventura que lhe valeu a alcunha. É minha, que meti literatura onde havia vida e substituí calor humano por anedota. Mas eu conto na mesma."

 

© Blog da Rua Nove

02.02.14

Henrique Lopes Guerra - A Cubata Solitária


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas), desenho de Henrique Abranches (1932-2004).

 

Henrique Lopes Guerra (n. 1937), A Cubata Solitária (1962).

 

Este volume em prosa de Henrique Guerra, o primeiro da sua bibliografia, foi publicado enquanto prestava serviço militar obrigatório como alferes miliciano.

 

No entanto, esse serviço prestado à nação não significava que não manifestasse a sua contestação à política do regime salazarista, razão pela qual veio a ser perseguido e encarcerado, intermitentemente, entre 1965 e 1973.

 

Antes de esta edição, Henrique Guerra havia já colaborado em publicações periódicas, como as revistas Cultura e Mensagem, e os jornais ABC - Diário de Angola e Jornal de Angola.

 

Posteriormente, já depois da independência de Angola, veio a publicar Quando Me Acontece Poesia (1976) e Alguns Poemas (1977), em verso, e, em prosa, Três Histórias Populares (1982) e a peça de teatro O Círculo de Giz de Bombô (1979). Publicou ainda o ensaio Angola - Estrutura Económica e Classes Sociais (1975).

 

Neste volume incluem-se três breves contos – O Regresso do Lunda, Mucanda, a Escola da Vida e A Cubata Solitária, onde o autor claramente enuncia o respeito pelas heranças e pelas tradições angolanas como motivo central das suas narrativas.

 

Em O Regresso do Lunda relata-se uma viagem do protagonista à descoberta de si próprio e do seu destino. Tal metáfora adquire nova leitura quando se fala de Ilunga, o soba que ficou à frente dos Lundas e pactua com os brancos, e de Quingúri, o rebelde que transformou os Lundas num novo povo nómada e insubmisso – os Quiocos.

 

Este motivo da independência e da insubmissão é retomado em A Cubata Solitária, onde se relata a vida independente e solitária de Calibo. Aqui, contudo, o desaparecimento de Calibo e a temerosa superstição que lhe sobrevem, associada pelo povo ao seu espírito e à sua cubata abandonada, denotam antes a perda desses valores.

 

No curtíssimo conto Mucanda, a Escola da Vida, perante o rito da circuncisão e a morte de Epaka, coloca-se-nos a questão da honra e responsabilidade que se apresenta a seu pai, Txipangue.

 

 

 

Do conto O Regresso do Lunda transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Uma noite, sentindo a alma revolta como a superfície de um lago onde lutam jacarés, o homem apartou-se  dos que se divertiam na dança. Cheio de desprezo e de ódio, o lunda abandonou a sanzala, ganhou as sombras da noite e o vazio da distância.

 

Resolvera seguir a pista dos seus irmãos, que haviam partido num dia de sol e de revolta, e àquela hora conquistavam o terror e o espanto de povos estranhos e o amor de lindas mulheres.

 

Mas ai dele, muitos anos haviam decorrido.

 

Os que tinham agido no momento preciso de há muito estavam de alongada e ninguém sabia dizer em que sítio preciso se encontravam naquele momento.

 

Haviam chegado ao mar, à famosa cidade de Luanda, atraídos pela fama do grande soba dos brancos, ao serviço do qual combateram. Anexaram os Bangalas, atravessaram o país dos Jingas, derramaram-se mais para o Sul, inquietando os Bienos e dividindo os agricultores Ganguelas, pacífico povo de poetas e cantares. E por toda a parte o cordão quioco ia engrossando como se engrossa um grande rio, anexando povos vários de costumes estranhos, graças ao seu extraordinário poder de assimilação.

 

O lunda errou luas e luas à procura de seus irmãos. Mas os guerreiros de Quingúri eram tão irrequietos como valentes, ninguém sabia indicar o término do seu rasto, as mulheres riam-se à passagem do lunda desgraçado e os homens sentiam um prazer maldoso em mandar os cães e as crianças enxotarem aquele representante da raça maldita."

 

© Blog da Rua Nove