Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

04.04.16

Vitor Silva Tavares - Hot e Etc.


blogdaruanove

 

Vitor Silva Tavares (1937-2015), Hot e Etc. (1964).

 

Até à data de publicação desta obra, Vitor Silva Tavares havia desenvolvido, na metrópole, obra como pintor, repórter, colaborador literário de jornais e revistas, colaborador da RTP, onde também surgiu como actor, e cenógrafo. Já em Angola, foi jornalista em Benguela, onde colaborou com O Intransigente, e dirigente cine-clubista, tendo realizado, em 8mm., o filme Uma História do Mar.

 

Ecoando o título do opúsculo aqui apresentado, e transpondo homonimamente o título do magazine cultural do Jornal do Fundão, criado por si em 1967, e da revista que lhe sucedeu, entre 1973 e 1974, Vitor Silva Tavares fundou em 1974 uma pequena editora, denominada &etc, que durante mais de quarenta anos haveria de se tornar numa editora de culto e referência entre autores e leitores. 

 

Posteriormente, publicou 2 Textos à Pressão (sem data), prefaciou Como Quem Não Quer a Coisa (1978), de Eduardo Guerra Carneiro (1942-2004), bem como obras de diversos outros autores, particularmente nas edições &etc. A par da sua actividade editorial, que inclui ainda a direcção da Ulisseia na década de 1960, desenvolveu também extensa actividade como tradutor.

 

Foi ainda co-autor de Ara (1984), com Paulo da Costa Domingos (n. 1953) e Rui Baião (n. 1953), e Poesia em Verso (2007), com Afonso Cautela (n. 1933) e Rui Caeiro (n. 1943), colaborando também no Manifesto contra o desastroso encerramento das livrarias da Cidade de Lisboa no centenário da Livraria Sá da Costa (2013). Em 2015 publicou um conjunto de poemas intitulado Púsias.

 

O presente volume, que, numa nota introdutória, anunciava ter Vitor Silva Tavares em vias de publicação o livro Exposições de Poemas (de que não foi encontrada notícia posterior), reune três textos em prosa – Nada de Importância, Hot e Bop, por onde perpassam, até na sua estrutura narrativa, nítidas influências musicais, particularmente do jazz, e referências a figuras como Frank Sinatra, Miles Davis, Mozart, The Jazz Messengers e Vivaldi.

 

Do conto/crónica Bop transcreve-se a parte final do seu único parágrafo:

 

" (...) O largo despovoa-se, estamos sós, a cidade foi dormir, amanhã há negócios a tratar. Falemos. O cronista não consegue registar o que quer que seja. Também ele está gasto de tanta palavra gasta. Gozemos com Pimpão. Jaimito desforra-se e zurze o orgão cardíaco do bom gigante. Mais cerveja e a festa anima. Decidimos visitar a boite do Hotel. Jaimito, que tal um show? Cá vamos, cantando e rindo. A boite exibe um ar diabólico, pintalga de labaredas toda a fauna. Conferimos as finanças e pedimos um só uísque. Vão roubar gatunos! Encostamo-nos ao balcão do bar. O pianista tecla uma melodia a carácter. Há três pares de atrasados mentais a deslizar na pista. Tudo muito chato. Às tantas, empurramos Jaimito para a bateria. Os românticos vão apanhar ar (que está húmido e fedorento) e começa a função. Jaimito mostra-se um tanto contraído, inclina-se para os tambores, busca a intimidade. Agora vê-se que descobriu qualquer coisa, os músculos distendem, já sorri para a malta. Vamos, seu Jaime, isso mesmo, está bem, está bom, YES SIR! Vem o gerente e recomenda compostura, muito gerentemente. Compostura, o raio que o parta! Saímos. Pimpão, não se arranja um carro? Só se for o da professora, mas já é tão tarde... Que se lixe! Vamos bater à porta da professora, uma cinquentona camarada. Ainda não se deitou, manda-nos entrar, oferece-nos ginguba e cerveja. Quanto ao carrinho, sim senhor, está muito bem, mas cuidado, an? É escusado recomendar, beijinhos à professora, by by. Voamos para o Benfica. Há festa cabo-verdiana, o petromax desenha um rectângulo de luz na escuridão da rua. Marchinhas brasileiras, em 78: a inconcebível geringonça sonora berra o ritmo popular e há camaradas autóctones a dar à perna. E pó e suor e olhos doces e dentes a luzir. Vamos a isto! Encontro-me enfaixado num corpo sinuoso e deixo-me abandonar. Cresce o frenesim, duas tipinhas imitam a dança do ventre e eu já não sei de que terra sou, no literal sentido da expressão. Há alguém que paga uns copos e todos bebemos a mistela, que é de estalo, pois então!... Um cara promete valente churrascada para o almoço de amanhã, mata porco, recebeu verde do Puto e quer reunir tropa à sua mesa. OK, português! A fraternidade escorre dos poros com o suor. A minha parceira chama-se Rosa e eu tenho pena dela e amo-a, amo-te Rosa, sabes?, a sério mesmo, e ela olha-me com aqueles seus olhos africanos e eu fico perplexo, à porta de um segredo, é só entrar e criar raízes. Ouço agora um escarcéu dos demónios e vamos ver o que é. Dois cow-boys resolveram armar sururu e o mais rabioso puxa do revólver e há gritos e fugas histéricas. Devo estar a sonhar. Um tiro rebenta com o petromax e a Rosa pisga-se-me dos braços. Amalgamado de corpos delirantes, deixo-me desaguar na rua. Que festa mais formidável!... A companhia já está no carrro e pomo-nos na alheta, num explosão de pó. Rumo: Lobito. Há um bar que fecha lá para as quatro da manhã, bar de marítimos. Pimpão, tens massas? E tu, Jaimito? Eu tenho 12 angolares e o Mário 7. Dá para umas Cucas. Aterramos no bar, há um alemão muito grosso, muito deutsch, a rosnar por mais bier e o empregado diz-nos ao ouvido que aquele tipo tem já a sua conta, de modo que vá beber a «birra» para a terra dele. O problema é do alemão, claro, também os alemães têm direito a problemas, razão por que nos sentamos pacatamente e bebemos Cucas, enquanto o louro germano dá murros no tampo da mesa. O ambiente está miserável e o melhor que temos a fazer é regressar a Benguela, home sweet home. Entramos na cidade a 120, contornamos a Praça da Câmara e, num banzé apreciável, travamos junto à cancela da nossa casa. Pimpão quer ouvir o Frank Sinatra naquela da solidão, mas mandamo-lo lixar e salta o Jazz Massengers [sic] para o prato. Mário vai buscar o que resta do VAT, Jaimito estira-se no divã e eu estou a coçar o joanete, que me doi como o raio! Ora bem: a África crepita e nós respiramos o ar da maldição. Já nascemos nesta atmosfera, atrofiados de imbecilidade histórica. O reino do silêncio e da vergonha. Quem ouvirá os nossos gritos? E quando? E onde? A conversa está melodramática, pelo que, com vossa licença, vamos despir as farpelas (excepto o Jaimito, por óbvias razões), enfiar os slips e mergulhar no Atlântico. Mergulhar mesmo. Mergulhar. Mergulhar."

 

© Blog da Rua Nove

22.03.16

Ruy Burity da Silva - Cantiga de Mama Zefa


blogdaruanove

 

Ruy Burity da Silva (n. 1940), Cantiga de Mama Zefa (1969).

 

Nascido no Lobito, o autor estudou no Ambriz e posteriormente em Nova Lisboa (actual Huambo). Nesta cidade frequentou a Escola Industrial e Comercial de Sarmento Rodrigues, onde foi galardoado por um poemeto intitulado Natal, que ali foi depois declamado precisamente num recital natalício.

 

Em 1963 passou a integrar o Centro Juvenil de Estudos do Huambo, departamento dos Serviços Culturais da Câmara Municipal de Nova Lisboa, que veio a promover a publicação de uma página quinzenal no jornal O Planalto, um programa semanal no Rádio Clube do Huambo e a criação de boletim interno destes serviços.

 

Em 1964 ganhou os Jogos Florais de Nova Lisboa, com o poema Marimba, tendo-se mudado para Lisboa em Dezembro, onde passou a trabalhar nos Serviços Culturais da Companhia de Diamantes de Angola. No ano seguinte reuniu a sua poesia, escrita entre 1955 e 1960, no livro Ochandala, assinado Ruy Silva e publicado em Nova Lisboa.

 

Posteriormente, veio a  integrar a equipa que promoveu a exposição A Arte de um Povo de Angola – Quiocos da Lunda, que decorreu em 1966 na Casa do Infante, no Porto.

 

Para além de artigos dispersos nos jornais O Planalto, de Nova Lisboa, A Província de Angola, de Luanda, Jornal do Comércio, de Lisboa, e Alvorada, da Lourinhã, colaborou também no Boletim da Agência-Geral do Ultramar.

 

Em 1969 anunciava-se a publicação do seu volume de poemas Foi Assim..., que acabou por sair em 1971 com chancela da Sociedade de Expansão Cultural, e a preparação do volume ...Também Já Fomos Um, de que não foi possível encontrar qualquer registo. 

 

É provável que a eventual fixação de residência do autor em França, ocorrida ainda antes do 25 de Abril de 1974, tenha motivado a não publicação deste último livro. Há notícia, que não foi possível confirmar, de que o autor terá regressado a Angola depois de 1974.

 

Ruy Burity da Silva utilizou ainda o pseudónimo Afonso Milando.

 

Do presente volume transcrevem-se dois poemas, Ndongo e Cantiga de Mama Zefa:

 

NDONGO

 

Dos vales e das montanhas. Dos mares e dos rios. Das florestas e savanas...

Lembranças de saudade.

Onde chingufos mil se elevam em uníssono com 

o matraquear estonteante dos carros que passam.

Lavas de pranto incandescente se erguem das sonatas doloridas dos quissanges.

O silêncio.

O universo aberto em espaços infinitos onde saltam ridentes cores em simbiose.

Um dongo sulcando águas revoltas de rio escuro de cantares sombrios.

Música.

Caravanas cruzando estradas em passos arrastados de fadiga.

Música.

Até no choro profundo dos vivos em homenagem

derradeira aos mortos que partem há música.

Letras de alegria.

Letras de lágrimas ardentes.

 

Poesia estranha de estranho poeta que ninguém 

conhece. Para lá dos seus poemas que existem, tudo é silêncio.

E indago:

Quem és tu estranho poeta que cantas os vales,

As montanhas, os mares, os rios, as florestas e savanas?...

Silêncio!

Cantas e  teu povo canta também.

Vibras e vibram contigo almas estranhas

que guardam segredos fecundos de vidas passadas.

No anonimato em que persistes vives constante.

Pertenças ao presente, ou ao passado.

Morto, ou vivo.

Existes sempre presente no eco repetido dos teus

cantares e na sonata triste dos tocadores de quissanje.

 

 

 

CANTIGA DE MAMA ZEFA

 

Ainda me lembro dela

matrona forte desengonçada

tinha sempre uma oração nos olhos

uma canção nos lábios grossos

 

dorme menino dorme

oh! oh! oh! oh! oh!

cazumbi não está vir

mama Zefa tá lh'olhar

 

tinha ciúme do menino

de quem mama Zefa falava com paixão

um dia perguntei com ansiedade

se o menino seria assim como eu

 

mama Zefa olhou-me tristemente

e com lágrimas na voz cantou

– não fala assim meu menino

Deus não faz filho mulato

 

Veja-se um comentário a este livro, destinado a ser gravado em 12 de Novembro de 1969, para o programa literário da Emissora Nacional intitulado Horizonte, da responsabilidade de Amândio César e Mário António, e a transcrição de um outro poema do autor, aqui: http://museu.rtp.pt/app/uploads/dbEmissoraNacional/Lote%2041/00014007.pdf.

 

© Blog da Rua Nove