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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

29.04.25

Antologia da Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea (III)


blogdaruanove

 

Pedro Duarte (Pedro Gabriel Monteiro Duarte, 1924-2016) frequentou os estudos secundários no Liceu Gil Eanes, na cidade do Mindelo. Funcionário administrativo desde 1945, foi administrador concelhio na Guiné, entre cerca de 1950 e 1970, ano em que, por questões políticas, foi transferido de Bolama para o concelho de Chibia, em Angola, onde se manteve até 1975. Neste ano mudou-se para Portugal, vivendo no país até se reformar.

 

Depois de aposentado regressou a Cabo Verde, sendo delegado do governo em S. Vicente e secretário-geral da Assembleia Nacional Popular, presidida por seu irmão Abílio Augusto Monteiro Duarte (1931-1996), um dos fundadores do PAIGC. Durante a década de 1990, devido a questões de saúde, regressou novamente a Portugal, ali permanecendo até 2014.

 

Colaborou nas revistas Claridade, Cabo Verde, Presença Crioula (Lisboa), Morabeza (Rio de Janeiro) e Raízes, entre outras, tendo publicado em 1999 o primeiro e único volume, Manduna de João Tienne, de uma planeada e anunciada trilogia, de características quase auto-biográficas, que acabou por ficar incompleta e inédita.

 

Sobre Pedro Duarte, refere a nota introdutória a este autor – "Um dos mais «bissextos» escritores cabo-verdianos, que, todos, poderiam aproveitar o adjectivo aprendiz de Carlos Drummond de Andrade, grande poeta da língua portuguesa, para exprimirem o peso da pedra tumular da vida de todos os dias que vai calcando lentamente, mas com uma paciência de formiga, a outra face da vida mais liberada e mais ampla. Nasceu na ilha de Santiago e é funcionário administrativo na Guiné Portuguesa. Como Virgílio Avelino Pires, como Manuel Lopes, como Jorge Barbosa, como todos nós, é um aproveitador de clareiras – quando elas se dignam aparecer.

É colaborador ocasional da revista mensal «Cabo Verde»."

 

O conto Migração, de que se transcrevem abaixo os primeiros parágrafos, havia sido anteriormente publicado no Boletim Cabo Verde, ano IV, n.º 39, de Dezembro de 1952, tendo sido galardoado com o 1.º prémio de "O Melhor Contista de 1952", instituído pela mesma publicação.

 

"A terra ressequida do fundo do vale levantou-se em nuvens de pó que o vento atirou para o céu mentiroso. Havia sete anos, sete dias, sete repartições do mundo que a chuva não caía. Os homens estavam desvairados e as plantas loucas cravando no seio da terra as raízes sequiosas.

Do céu pedrento de há pouco restam nuvens esfarrapadas. Agora o mar rebate-se com menos fúria de encontro à penedia da encosta.

Um dos homens do sítio retirou a cabeça da pequena janela donde estivera a observar a tarde que prometera a chuva esperada. Coxeou sustendo-se num caixote vazio a servir de assento e depois numa arca velha até junto da única cadeira sem respaldo a um canto do aposento desolado.

No quarto adjacente o sol brando da tarde voltou a entrar confiante pela armação do telhado, desenhando no chão o rectângulo das bitolas.

A porta interior de ligação fora arrancada e substituída por um tapado em serapilheira. Um aparte do muro do quintal desmoronou abrindo caprichosamente uma segunda entrada. Os dois anexos que em tempos serviram para arrecadação de produtos da lavoura ficaram também sem a cobertura e as portas. No quarto devassado da pequena moradia ervas bravas cresceram no alto dos muros e ali estiolam tostadas peloSol.

As telhas foram vendidas. A porta de comunicação entre os dois aposentos do casinhoto servira para o fundo do esquife de nhâ Bajim."

 

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29.12.23

Antologia da Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea (I)


blogdaruanove

 

A presente antologia, com selecção de Baltasar Lopes (1907-1989), introdução de Manuel Ferreira (1917-1992) e comentários de António Aurélio Gonçalves (1901-1984), apresenta um conjunto de contos e excertos de romances da autoria de nove escritores – António Aurélio Gonçalves, Baltasar Lopes, Francisco Lopes (1932-2001), Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002), Henrique Teixeira de Sousa (1919-2006), Jorge Barbosa (1902-1971), Manuel Lopes (1907-2005), Pedro Duarte (Pedro Gabriel Monteiro Duarte, 1924-2016) e Virgílio ("Djila") Pires (1935-1985).

 

Prosseguindo com o critério de mencionar em primeiro lugar autores cuja obra ainda não tenha sido transcrita neste espaço, destaca-se hoje o trabalho de Francisco Lopes, representado nesta colectânea com dois contos – Chuva de Agosto, que havia sido publicado no Boletim Cabo Verde, em Outubro de 1958, e O Ourives (inédito).

 

Francisco Lopes frequentou o liceu no Mindelo, licenciando-se posteriormente em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa. Regressou em 1959 a Cabo Verde, onde foi docente no Liceu Gil Eanes até 1960, e, a partir desse ano, na Escola Industrial e Comercial do Mindelo, onde veio a desempenhar os cargos de subdirector, até 1974, e director, até 1988.

 

Uma vez que havia frequentado também o curso de Direito, exerceu ainda as funções de Procurador Geral da República na comarca do Barlavento, entre 1961 e 1963, e, entre 1964 e 1974, as de juíz substituto no Tribunal de S. Vicente. Depois da independência de Cabo Verde, veio a ser director regional de educação para as ilhas do Barlavento e presidente da Câmara Municipal de S. Vicente. Entre diversos outros cargos, foi também director da Rádio Barlavento.

 

Em 1960 co-organizou, com Baltazar Lopes, o número 9, o último, da revista Claridade, onde publicou o conto O Resgate. No cinquentenário da mesma revista, celebrado em 1986, contribuiu para uma edição comemorativa, extra-série, com o conto Bisca Interrompida.

 

Do conto Chuva de Agosto, traduzido para língua inglesa em 1972, aquando da sua publicação na África do Sul, e para língua russa em 1983, aquando da sua publicação na URSS, transcrevem-se os primeiros parágrafos:

 

"Uma atmosfera pegajenta, como só acontece nos dias que precedem as grandes chuvas de Agosto, amortalhava a ribeira. Parecia que o céu se unia à terra, àquela terra boa e generosa, num abraço de calor molhado, sufocante, que vinha de um ror de nuvens carregadinhas de humidade que cavalgavam por cima do vale, como alimárias desenfreadas, semm deixar cair pingo d'água. Um relâmpago cortou o céu em requebros de centopeia, seguido de um grande estrondo. O trovou reboou pela ribeira, cresceu, ganhou força, e, entrechocando-se pelas vertentes, desabou sobre a povação. Lá longe as cumieiras da Rocha Grande devolveram o eco num rugido sinistro.

 

Simão Toca estava sentado no alto do cabeço. Olhou para o céu, semicerrando os olhos feridos pela intensa claridade. Quedou-se assim por algum tempo, vasculhando as nuvens com a vista, a abanar a cabeça devagarinho, devagarinho, como quem escuta uma conversa com atenção. Aquilo era linguagem de chuva de Agosto que não tardava a cair. O que o aborrecia era a questão do dique. Tinha feito uma plantação mesmo a meio da ribeira e a única esperança de a salvar era o dique ficar pronto antes de as-águas. Simão Toca fez um sinal a André, que andava perto, metido numa moita. André aproximou-se.

 

– Boas-horas, nhô Simão – disse numa voz despreocupada. Simão Toca mal lhe respondeu e continuou ali especado, numa posição característica, pernas afastadas, mãos debaixo do queixo, apoiadas numa bengala de nós grossos que se espetava verticalmente no chão, direita como fio de prumo. Simão Toca repuxou os olhos para cima e encarou André.

 

– Então, esta obra no dique fica pronta antes da chuva de Agosto, não? – André rodava o boné entre as mãos.

 

– Trabalho vai indo, nhô Simão, vai indo – respondeu. Dificuldade é o dique ter de passar dentro da propriedade de Djoquinha de Nhuto, no lado norte. Simão Toca mal ouviu a resposta. Levantou-se de repente, como que sacudido por uma ideia luminosa e apontou para a ribeira.

 

– Olha ali, André, olha-me para aquele milheiral lá em baixo. Não notas nada? André fez um aah! inexpressivo, como quem não conseguia perceber. Ali moço – ali no caminho do dique. É aquela rocha, moço, é aquela rocha. Basta um fogo de dinamite para a deitar abaixo. Desviamos a rota da ribeira e nem é preciso acabar o dique no lado norte. André só então percebeu para onde Simão Toca apontava. Olhou para ele, olhou para a rocha, voltou a olhar para ele e arriscou numa voz hesitante:

 

– Mas nhô Simão aquele milheiral é já dentro da propriedade de Djoquinha de Nhuto e se a gente der fogo ele não vai ficar contente. Pode até dar contenda judicial.

 

Simão Toca voltara a sentar-se. Deu uma gargalhada e estendeu o braço para André.

 

– Qual contenda, qual quê. Eu tenho Djoquinha de Nhuto dentro da minha mão. Assim – disse – carregando na última sílaba e fechando o punho num gesto significativo. Dentro da minha mão – ouviste? André pediu licença e afastou-se lentamente. De longe Simão Toca ainda lhe gritou:

 

– Passa pela ribeira e põe os homens a trabalhar bem. Quero o dique pronto antes da chuva de Agosto."

 

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