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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

12.06.24

poesias de m. antónio


blogdaruanove

 

 

Mário António (Mário António Fernandes de Oliveira, 1934-1989), poesias de m. antónio (1956).

Capa de Israel de Macedo (datas desconhecidas).

 

Consagrado poeta, natural de Maquela do Zombo, fez os estudos liceais em Luanda, para onde a sua família se havia mudado entretanto, publicando as suas primeiras poesias ainda enquanto estudante liceal.

 

As suas actividades políticas levaram-no a estar próximo do Partido Comunista Angolano e do Movimento Popular de Libertação de Angola. A partir de 1963 passou a residir definitivamente em Portugal, estando ligado à Casa dos Estudantes do Império e às actividades dos movimentos de libertação ali desenvolvidas. No mesmo ano foi galardoado com o prémio Ocidente para poesia, do Secretariado Nacional de Informação, galardão que, na área do ensaio, foi também atribuído ao professor universitário Torcato de Sousa Soares (1903-1988).

 

Apesar das ligações do autor aos movimentos independentistas, Marcello Caetano (1906-1980), que haveria de suceder a António de Oliveira Salazar (1889-1970) como Presidente do Conselho de Ministros, pronunciou-se assim, em carta datada de 2 de Março de 1965, sobre a obra ficcional de Mário António:

 

"Já conhecia o poeta, o ensaísta, não me fora dado apreciar o prosador de ficção. Claro que o ser poeta é uma condição: e essa condição transluz na própria prosa. Mas neste livro [Crónica da Cidade Estranha, referido aqui: M. António - Crónica da Cidade Estranha - Literatura Colonial Portuguesa (sapo.pt)], embora nos olhos de quem viu haja sempre sonho, a realidade aparece na crueza da observação. E que admirável linguagem! Como a vida dessa Luanda negra e mestiça que eu ainda conheci a impor-se na cidade mal definida dos anos 30 tem no Mário António um contista fiel, amoroso e eloquente! Eloquência sem retórica, a eloquência da vida, dessa vida que nos faz conviver com as figuras evocadas, sentir as suas dores, partilhar dos seus anseios, inquietar-nos com as suas inquietações, entristecer-nos com os seus desalentos e vibrar com as suas alegrias!

Estranho que ao seu livro não tenha ainda a crítica dado todo o valor que ele tem como documento e como obra de arte. Eu considero-o um dos mais notáveis casos literários relativos à crise de transição por que passam os africanos."

 

Naquele mesmo ano de 1965, em carta datada de 7 de Junho, afirmou Roger Bastide (1898-1974) sobre o referido livro: "Votre livre m'apporte une autre Afrique que celle du folklore ou celle de la révolte - une troisième Afrique, qui a gardé toute la poesie de la première (mais maintenant une poésie intérieure) et toute l'amertume de la seconde (mais maintenant un simple goût de cendre dans la bouche et dans la bouche et dans le coeur)."

 

Depois do primeiro volume aqui destacado, e até 1974, publicou as seguintes obras em verso - Amor (1960), Poemas & Canto Miúdo (1960), Chingufo, Poemas Angolanos (1961), prémio Camilo Pessanha de 1961, 100 Poemas (1963), prémio Ocidente / Poesia de 1963, Mahezu (1966), Era Tempo de Poesia (1966), Rosto de Europa (1968), Coração Transplantado (1970).

 

Em prosa publicou também, até 1974, Gente para Romance: Álvaro, Lígia, António (1961), Crónica da Cidade Estranha (1964), Farra de Fim-de-Semana (1965), e Luanda - Ilha Crioula (1968).

 

Várias outras obras publicou depois de 1974, inclusive na área dos ensaios e estudos académicos, uma vez que se doutorou em estudos Portugueses no ano de 1987. Na sequência deste percurso, foi professor de Literatura Africana de Expressão Portuguesa, na Universidade Nova de Lisboa, e presidente da Secção de Literatura da Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi ainda Director dos Serviços para a Cooperação com os Novos Estados Africanos da Fundação Calouste Gulbenkian.

 

Antes de publicar este primeiro volume de versos, havia colaborado, em 1952, nas revistas Távola Redonda, de Lisboa, e Mensagem, de Luanda, onde a sua poesia foi divulgada, escrevendo nesse mesmo ano o famoso poema Canto de Farra, posteriormente musicado, cantado e gravado (1975) por Ruy Mingas (1939-2024), com o título Poema da Farra.

 

Segundo a Fundação Calouste Gulbenkian, recebeu ainda, a título póstumo, o prémio Camões (embora o seu nome não conste da lista oficial de galardoados). A mesma Fundação instituíu, em 2001, um prémio literário com o nome de Mário António, que foi atribuído, nessa sua primeira edição, a Mia Couto (n. 1955), pelo romance O Último Voo do Flamingo (2000).

 

Neste volume publicam-se dezanove poemas, escritos entre 21 de Outubro de 1951 e 8 de Setembro de 1954, que, explicitamente, ora evocam memórias de infância ora transmitem impressões amorosas. De uma forma mais velada, outras ideias e situações se transmitem, como no poema que abaixo se transcreve:

 

"O AMOR E O FUTURO

 

Calar

esta linguagem velha que não entendes

(Tu és naturalmente de amanhã

como a árvore florida)

e falar-te na linguagem nova do futuro

engrinaldada de flores.

 

Calar

esta saudade velha

e a nostalgia herdada dos brancos marinheiros

e de escravos negros

de noite sonhando lua

nos porões dos negreiros.

 

Calar 

todo este choro antigo

hoje disfarçado em slow, bolero e blue

(Teu sentimento

e esta pressão dorida que não mente:

teus seios contra o meu peito

a tua mão na minha

o calor das tuas coxas

e os teus olhos ardentes...)

 

Calar tudo isso

(Tu és naturalmente do futuro

como a árvore florida)

e ensaiar o canto novo

da esperança a realizar

Cantar-te

árvore

espera de fruto

ante-manhã

 

Nascer do sol em  minha vida."

 

© Blog da Rua Nove

21.06.22

M. António - Crónica da Cidade Estranha


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M. António (Mário António Fernandes de Oliveira, 1934-1989), Crónica da Cidade Estranha (1964).

 

Ensaísta, ficcionista e poeta, Mário António havia publicado até à data de edição desta obra os seguintes livros de poesia Poesias (1956), Amor (1960), Poemas & Canto Miúdo (1960), Chingufo - Poemas Angolanos (1962; prémio Camilo Pessanha), 100 Poemas (1963; prémio Ocidente) e o romance Gente para Romance: Álvaro, Lígia, António (1961), para além de ter colaborado em diversas revistas, como Mensagem (1952), e publicado alguns ensaios.

 

Posteriormente haveria de publicar Farra de Fim-de-Semana (1965), Mahezu (1966), Era Tempo de Poesia (1966), Luanda - Ilha Crioula (1968), Rosto da Europa (1968), Coração Transplantado (1970) e inúmeros ensaios que marcariam o seu percurso académico e de investigação, o qual culminaria num Doutoramento em Estudos Portugueses, com especialização em Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (1987).

 

Depois de concluir o curso liceal, em Luanda, foi observador meteorológico de 1952 a 1963, ano em que passou a frequentar, em Lisboa, o curso de administração ultramarina no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Enquanto activista político, colaborou na fundação do Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (1953) e do Partido Comunista Angolano (1955), partidos que haveriam de estar na origem do Movimento Popular de Libertação de Angola, fundado em 1956.

 

É ainda autor da letra do conhecido Poema da Farra, musicado e cantado por Ruy Mingas (n. 1939).

 

A presente obra divide-se em duas secções – a primeira, com uma narrativa mais longa, datada de 1957-58, que se desenrola ao longo de 83 páginas e XV capítulos; a segunda, intitulada Apêndice, com um conjunto de dez textos mais curtos, ostentando títulos diferenciados cada um, apresentados ao longo de 32 páginas.

 

Do capítulo XIV transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Ele ama os cheiros da cidade como ninguém. ou talvez não seja bem assim. há os que os não sentem, mergulhado sempre neles; e há os acostumados aos ambientes esterilizados, inodoros (mas têm um cheiro, sim, que ele já sentiu!), que deitam a mão ao nariz quando o seu apurado olfacto acusa certas presenças incomodativas. Incomodativas e plebeias.

 

Mas ele acha que sim, que tudo tem um cheiro. E os únicos cheiros que não ama são precisamente aqueles que a patroa não sente na casa onde tem de limpar constantemente os móveis, o chão, tomar banho (a patroa sempre aflita com o seu cheiro de catinga), cheiros que não são da vida, mas só cheiros, isolados, incomodativos. Sim, esses realmente incomodativos: o «polish», a graxa, a cera e, agora se lembra, aquelas coisas que fazem da senhora uma pessoa diferente, depois que ela se fecha no quarto para se preparar.

 

Dos outros cheiros ele gosta, ou melhor: entrega-se-lhes. O cheiro a terra, material, entrando pelas narinas, da sua cubata. Cheiro variável com o tempo. Enorme, envolvente, colando-se ao corpo, quando o Sol do meio-dia reduz as sombras; repousante, sossegado, à noite, quando a paisagem dorme; inquietante, como uma mulher, quando a chuva se vai embora e pingos desgarrados tamborilam no zinco do telhado.

 

Há ainda os vários cheiros da vida, os cheiros das aglomerações humanas. De todos, o mais complexo, vário, colorido, gritante, é o do mercado, com as mulheres sentadas no chão, as quindas à volta, um abano a afugentar as moscas que querem pousar nos bagres secos, negros e submetálicos; no bombó assado; na batata-doce escondendo sob a pele queimada, baça, uma quentura amarela; nos dendéns vermelhos; nos limões de casca seca e ácida; nos cocos cor de capim da cubata... ou então em coisas que ele aprecia mais mas que são raras, misteriosas e estranhas, como o jinjimo ou o muxilo-xilo, cada um exalando o seu cheiro, numa longa gama, com gradações, correspondências e contrastes, dispersões e tempos mortos, pausas e sequências até ao infinito, numa composição avassalante. Diante do mercado – a mais complexa composição de cheiros que conhece –, ele não resiste: entrega-se. E fecha os olhos precisamente pela mesma razão por que o senhor doutor fecha os dele, ao pé da telefonia, a ouvir aqueles sons que ele também gostaria de entender, mas só lhe chegam de mistura com o tinir da louça que lava.

 

E os cheiros acres, poderosos, construtivos, dos homens no trabalho? Lembra-se de quando trabalhou na estrada, a picareta, na longa fila de homens vergados. Um cheiro que tinha modulações, ia a dizer, musculares, se retinha e expandia, e martelava com um som cavo e compassado nas suas narinas. Um cheiro poderoso, hipnotizante, que identificava os homens.

 

Também lhe agradavam os cheiros da praia, das formas coloidais que a maré vazante deixa sobre a areia, um cheiro que parece vir de baixo da terra e sobe, sobe, até afogar um homem. Ou o cheiro do fumo das fogueiras em que se assam mabangas, vivo, pontuado de renúncia e estranhamente apetitoso. Ou ainda o cheiro do peixe a secar ao sol, tão identificado com a luz que dir-se-ia vir do alto e ocupar todo o espaço."

 

© Blog da Rua Nove

21.06.19

Augusto Casimiro - Portugal Atlântico


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Augusto Casimiro (1889-1967), Portugal Atlântico (1955).

 

Compilação de vários poemas datados de diferentes anos – 1914 (Acampamento – Noite, O Zambeze e um Mapa, Fogueira de África), 1924 (Horas Africanas, Oração da Noite Africana), 1944 (Colono), este volume foi distinguido com o Prémio Camilo Pessanha em 1954.

 

Inspirados por todos os territórios coloniais banhados pelo Atlântico, como o nome sugere, predominam, contudo, nestes poemas, referências a Cabo Verde, particularmente às ilhas Brava e Santo Antão, e a Angola.

 

Não deixa de ser interessante o facto de parecerem perpassar, em algumas destas composições poéticas, conceitos também presentes na Mensagem (1934), de Fernando Pessoa (1888-1935), impressão que, do mesmo modo e do ponto de vista estrutural, tende a ser suscitada no início do volume.

 

Com efeito, as primeiras poesias integradas na secção Pela Batalha ao Restelo apresentam títulos sugestivos dessas evocações – Portugal, A Canção do Novo Restelo, Sinfonia do Mar Alto, Hora do Ponto.

 

Curiosamente, para sublinhar toda estas ténues evocações, até a própria expressão "É a hora!", patente no poema Nevoeiro (1928), de Pessoa, surge no poema Oração da Noite Africana, alegadamente datado de 1924, embora num contexto completamente diferente.

 

Um ponto distinto nesta estruturação, no entanto, é a secção intitulada Canto ao Brasil no Mar, que apresenta três poemas dedicados a esta temática.

 

Desta obra, transcrevem-se, de seguida, o poema Fala Crioula e o soneto Prece, inspirados, respectivamente, por Cabo Verde e Angola:

 

 

FALA CRIOULA

 

"Esta fala é sempre nossa.

Fala crioula?... Afinal,

Para alma que bem a ouça,

É fala de Portugal!

 

É uma fala de menina,

Andou ao colo, amimou-se,

Ficou sempre pequenina,

E, de preguiça, mais doce.

 

Ouço-a agora, embala, arrola...

Sabe a amor, sabe a tristeza...

Na voz da gente crioula

Oiço a alma portuguesa...

 

E, às vezes, com mais doçura...

Algumas palavras têm

Mais humildade e altura,

Mais gosto da terra e além...

 

Morabêsa... amor e beijo

Que se não dá, que se fala,

Em que há gosto de desejo

E o aroma que o cravo exala...

 

O que é doce à alma e ao gosto

É sabi... sabe a carinho...

Saber não contém desgosto...

O que é mais sabi... é sabinho.

 

Grandeza... Entre nós humilha

Se não é Deus. Grandeza

Aqui, nas almas da Ilha,

É alegria, é morabeza...

 

Contente... quem diz contente

Entre nós diz alegria,

Mas na boca desta gente

Só quer dizer: simpatia...

 

A fala crioula é nossa

Trouxe-a ao colo Portugal..."

 

 

PRECE

 

"Terra de Angola, Mãe da Primavera:

– Só de te descobrir logo o tocou,

Ao primeiro que veio e te encontrou,

Do teu bárbaro encanto a lei severa.

 

Estás, sempre e sem fim, à nossa espera.

Por ti sofremos. Contra ti pecou

A nossa Alma e a tua nos perdoou.

– Quem amar-te não soubesse te perdera...

 

Desejada e rendida te violámos

E ficamos escravos, de ti... Esta hora

É a doutro encontro, como dois irmãos,

 

Na terra em que sonhamos e lavramos,

À luz igual duma fraterna aurora, 

Um destino mais alto, dando as mãos."

 

© Blog da Rua Nove

04.10.16

Geraldo Bessa Victor - Sanzala Sem Batuque


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Geraldo Bessa Victor (1917-1985), Sanzala Sem Batuque (1967).

 

Essencialmente poeta, o autor havia publicado antes deste livro, o seu primeiro de "prosa de ficção", diversos ensaios e volumes de poesia. A sua primeira obra poética - Ecos Dispersos, foi publicada em 1941. Ainda na poesia, seguiram-se Ao Som das Marimbas (1943), Debaixo do Céu (1949), Cubata Abandonada (1958), obra que recebera o prémio Camilo Pessanha no ano anterior, e Mucanda (1964).

 

Neste volume reunem-se oito contos - A Filha de Ngana Chica, Duelo de Gigantes, O Pecúlio, É Proibido Brincar, O Comboio e o Navio, Domingas ou as Duas Faces da Alma, Chiula Chitacumba, Estudante e Carnaval. Embora alguns registos narrativos rocem superficialmente o anedotário, como em Chiula Chitacumba, Estudante, alguns outros traduzem inopinados dramas sobre a natureza humana, como em O Pecúlio.

 

Formado em Direito e exercendo em Lisboa, depois de ter sido bancário em Luanda, Geraldo Bessa Victor não esqueceu, contudo, algumas das problemáticas e das tensões sociais que se sentiam em Angola, dedicando particular atenção às que poderiam advir da mestiçagem, tema central em A Filha de Ngana Chica e É Proibido Brincar.

 

Deste último conto transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Lembrava-se bem de certos factos que lhe não deixavam dúvidas sobre a índole maléfica da comadre. Esta orgulhava-se ostensivamente de ter um «marido» mulato e de ser mãe de um filho mulato («O meu marido é mulato». «Sim, como sabes querida Hortense, o meu Julião é mulato». «Existe muita diferença entre um garoto preto-fulo, que pode considerar-se mulato porque é filho de mulato, e outro preto retinto, filho de pai e mãe pretos, não é verdade?». «Bem, minha querida, mulato não é o mesmo que negro, não achas?». «Ah, filha, não tenhas a menor dúvida, o branco não fala para o mulato como fala para o preto!»).

 

Tantas vezes Hortense sentiu vontade de lhe dizer cara a cara: «O teu marido, não; o teu amante, o homem com quem vives. O Bernardo, meu marido, é terceiro oficial da fazenda, ao passo que o teu amante, o Julião, é simples amanuense, inferior hierárquico do meu Bernardo». Susteve-se, porém, dada a disciplina da sua educação. tinha medo da linguagem biliosa e desenfreada que a comadre desalojasse das vísceras.

 

Certa vez, desabafou, sorridente, dissimulando em palavras serenas a fúria que lhe crescia no íntimo:

 

– Se eu quisesse ter um amante mulato ou mesmo branco, tê-lo-ia com facilidade; mas quis casar-me, e porque gostei do meu Bernardo, que calhou ser negro como poderia doutra raça ou cor, casei com ele. É um homem de valor.

 

A outra contestou, também com sorriso simpático, mas venenoso, e com frases também vestidas de aparente serenidade, mas achincalhantes:

 

– Não te iludas, querida! Um mulato é sempre olhado indubitàvelmente como pessoa civilizada, quer pelos brancos quer pelos próprios negros; mas um preto, ainda que muito educado e instruído, tem de provar primeiro que é efectivamente civilizado, senão olham-no e tratam-no como um indígena qualquer.

 

Hortense percebeu onde a outra queria chegar.

 

Um domingo, de manhã, Bernardo e Julião passeavam juntos por altura do Maculusso, nessa Luanda dos anos 30, quando um sipaio, aparecendo-lhes de chofre, berrou:

 

– Xê! A tua cabeça?

 

Foi Bernardo, o negro, e não Julião, o mestiço, quem sentiu uma voz muito funda a segredar-lhe dos recessos da alma violentada: «aquilo é contigo». Altivo, redarguiu, com rebuscada firmeza:

 

– Eu não pago cabeça, sou civilizado.

 

O sipaio escarneceu-o, com uma gargalhada gutural de rancorosa bestialidade, ao mesmo tempo que lhe assentava no dorso duas rijas chibatadas para o amainar:

 

– Civrizado, hem? Civrizado, negro de merda! Ó seu cabrão, você se atreve, seu negro, intrujar  a mim? Você és preto como eu, onde é que és civrizado? Você ainda és pior que a mim, seu monangamba!

 

Depois de lhe descarregar como remate uma formidável bofetada («leva já nesse mazumbo de mabeco!»), o sipaio agarrou-o e foi incorporá-lo, à esquina da rua, na muxinda de negros, alguns descalços e esfarrapados, que a rusga já caçara na sua ronda para seguir a caminho da esquadra. Aí apareceu meia hora depois o compadre Julião, que prudentemente não quisera interferir na operação policial e preferiu dirigir-se ao chefe, seu conhecido, para quem uma noite arranjara uma mulata boa em baile de rebita e de quem obteve a ordem de libertação de Bernardo.

 

Hortense sabia, desgostosa, que Genoveva narrava este incidente às amigas comuns, comentando-o e pondo nos olhos, como artista de comédia, uma expressão mista de magnanimidade e indignação:

 

– Não está certo! Até me revolto toda! O Bernardo, o meu compadre... Ele não é um preto qualquer, mas, sim, terceiro oficial da Fazenda! Mas, creiam, quando o meu marido falou como chefe da esquadra, seu amigo, este desfez-se em mil desculpas."

 

Este volume apresenta ainda, no final, uma lista de "vocabulário", com cinco páginas, onde se clarifica o significado de muitas expressões ou palavras de quimbundo empregadas ao longo das narrativas.

 

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