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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

12.06.25

Revista Cultura (VII)


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Este número 9, publicado em 1957, apresenta poemas de autores associados a Angola, Emílio [Machado] da Costa Rosa (1932-1998), Cabo Verde, Manuel Lopes (1907-2005) e Moçambique, F. A. Barradas (datas desconhecidas), que haviam sido anteriormente publicados no Boletim Cabo Verde e na revista ELO (Moçambique).

 

Curiosamente, embora Emílio da Costa Rosa, que assina o poema Para uma tarde de neve, tenha nascido em Angola, foi em Moçambique que desenvolveu parte da sua carreira profissional, quer como magistrado quer como advogado, depois de ter passado pelo Colégio de S. Luiz, em Espinho, onde completou a Instrução Primária e fez o curso do Liceu, e pela Faculdade de Direito, em Lisboa.

 

F. A. Barradas, que assina Meus tristes poemas, não aparece mencionado em muitas fontes, embora o seu nome surja na revista Pela Patria, publicação mensal da comunidade portuguesa de Xangai, também relacionada com Macau, que foi editada nos anos de 1940 e 1941.

 

Embora já se tenham apresentado aqui passagens de outros trabalhos do consagrado Manuel Lopes, quer em verso quer em prosa, transcreve-se agora mais um poema do autor, um olhar claridoso sobre a emigração que ainda hoje caracteriza a realidade de Cabo Verde:

 

Poema de quem ficou

 

Eu não te quero mal

por este orgulho que tu trazes,

por este ar de triunfo iluminado

com que voltas...

 

... O mundo não é maior

que uma pupila dos teus olhos:

tem a grandeza

das tuas inquietações e das tuas revoltas.

 

...Que teu irmão que ficou

sonhou coisas maiores ainda,

mais belas que aquelas que conheceste...

Crispou as mãos à beira-mar

e teve saudades estranhas, de terras estranhas,

com bosques, com rios, com outras montanhas,

– bosques de névoa, rios de prata, montanhas de ouro –

que nunca viram teus olhos

no mundo que percorreste...

 

© Blog da Rua Nove

02.03.25

Revista Cultura (VI)


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O número 21 desta revista apresenta o poema Pressentimentos, de Maria Madalena, que havia sido já publicado na revista Cabo Verde.

 

Este pseudónimo, de minimalista inspiração bíblica, corresponderá a Maria Madalena Valdez Trigueiros de Martel Patrício (1884-1947), a primeira escritora portuguesa nomeada, por Bento Carqueja (1860-1935), para o Nobel da Literatura, nomeação que ocorreu em 1934 e se repetiu em anos subsequentes.

 

Curiosamente, a escritora ter-se-á estreado com a publicação de uma obra em língua francesa, Le Livre du Passé Mort (1915), a que se seguiram Impressões de Arte e de Tristeza (1915), Sombras na Estrada (1920), Poemas da Côr e do Silêncio (1922), Os Sete Demónios (1926), Sagradas Pedras (1930) e Rosário da Vida (1935), entre vários outros títulos.

 

Embora não se conheça qualquer registo que associe a autora a África ou a Cabo Verde, e justifique a sua publicação na citada revista, transcreve-se o referido poema, considerando eventuais referências, ambíguas e equívocas, à insularidade e os valores metafóricos que estas podem traduzir:

 

"Terei de aqui ficar a vida toda

À espera de partir?...

Olhando o mar,

Esperando o navio que há-de chegar.

A carta que há-vir?

Terei de aqui ficar ouvindo

O lento caminhar das horas?

Ouvi-las soluçar

A minha vida inútil e vazia

E bater devagar,

Os silêncios e espantos que ela cria?

Terei de aqui ficar a vida toda

Ouvindo as horas lentas repetir

O oco, da minha pobre vida

Falhada?

Terei de aqui ficar à espera da chegada

Daquele barco que nunca há-de chegar

E que há-de encaminhar

A minha vida a rumos ideais?

Terei de esperar essa carta

Que não chegará mais?

Terei de esperar que se abra essa porta

Que teima em não se abrir?

Já sinto no meu sangue

As horas lentas caminhar,

O mar rugir,

A carta que não tarda,

A hora que se apressa,

A vida que começa,

E o barco, que enfim! se fez ao mar!...

E hei-de partir!

E hei-de viver!

E hei-de aqui ficar a vida toda

à espera de morrer..."

 

© Blog da Rua Nove

16.01.25

Revista Cultura (V)


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O número 39 desta revista apresenta o conto Titia, de Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002). Num registo coloquial próximo da oralidade, esta narrativa apresenta-nos o retrato de uma viúva que abandonou Cabo Verde, onde apenas um dos três filhos permaneceu, para viver sozinha em Lisboa, sem quaisquer amigos ou confidentes a não ser José, o narrador.

 

Embora ainda não tenha sido reproduzido o conto deste autor, intitulado Resignação, publicado em 1958 no número 14 desta mesma revista, número já aqui abordado, transcrevem-se de seguida os primeiros parágrafos de Titia, sem mais informações adicionais, uma vez que já foram anteriormente referidos alguns dados bio-bibliográficos sobre o escritor (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/3552.html):

 

"Titia nem teve paciência... Recado num dia, bilhete no outro... Caramba! Nem que fosse sangria desatada! É preciso compreenderem que eu nem sequer sou parente dela. Sim senhores... Nem filho, nem sobrinho, nem primo, nem nada. Chamo-lhe Titia por amizade.

 

Titia não é má pessoa, não. Só que de vez em quando tem suas rabujas... Hoje os seus filhos estão longe. Ela vive cá em Lisboa. Viver «cheio de buracos vazios» porque «dinheiro é pouco e velhice ingrata»... Veio para aqui com destino à Argentina. Zulmira, a filha mais velha, vive lá. Mas depois levantaram-se impedimentos, «assoprou aquele ventinho que tem de pegar toda a criatura sem sorte» e ela não seguiu. Foi resolvido que ela ficasse. Voltar para Cabo Verde era asneira... Nhônhô, o que está em Moçambique, foi de opinião que mais vale viver mal em Lisboa do que viver bem em S. Vicente. Sim, porque Titia já viveu bem... «Quem a visse hoje em dia com o seu balaio de compras debaixo do braço não dizia que estava ali uma quintanista, e das antigas...» Titia viveu bem enquanto o marido foi vivo. Negociante de baia. Ela mesma fazia os bolos para vender na Pracinha do Liceu. Foi assim que compraram a sua casinha no Lombo-de-Trás e puderam educar os filhos. Nhônhô tirou o sétimo ano e concorreu para Moçambique. Zulmira também estudou. Essa é que embarcou para a Argentina. Lela não quis estudar. Fez o terceiro ano e empregou-se na companhia Madeira. Parodista e mulherengo dos bons... Titia às vezes lastimava-se de Lela não ter o 7.º como Nhônhô.

 

– O que tu queres é esta vidinha de cachorro vadio...

 

Lela ria, ria e não dizia nada. O riso de Lela é sonoro e sacudido.

 

Pois, para Titia o bom tempo durou enquanto durou o marido. Homem é que é tecto de uma casa, já se vê. Depois começou a dispersão. Nhônhô casou, Zulmira foi para a Argentina e Lela tirou uma rapariga de casa. Que é que Titia ia fazer sòzinha na casa vazia? Sim. Que é? Foi então que ela resolveu embarcar também. Aqui em Lisboa aguentava-se com o dinheirinho que os filhos lhe mandavam. Filhos... vírgula... Só Nhônhô lá de Moçambique achava jazigo de lhe mandar qualquer coisa. Não era muito, já se sabe, pois, como vocês calculam, um homem casado tem de olhar para o futuro da mulher e dos filhos. Quanto aos outros Zulmira de vez em quando mandava roupas usadas e Lela só escrevia para dizer: «Mamãi do meu coração quando aprecer portador de confiança mando você uma boa encomenda. Seu filhinho que lhe estima do fundo da alma e que lhe pede a bênção Manuel». Titia ben se amofinava com o que ela chama «ingratidão familiar».

 

– Este moço não me escreve uma cartinha com tripa.

 

Tripa na linguagem de Titia é dinheiro."

 

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10.08.24

Revista Cultura (IV)


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O número 41 desta revista apresenta um conto de Onésimo Silveira (1935-2021), Superstição, e um poema de Ovídio Martins (1928-1999).

 

Uma vez que o conto Destino de Bia Rosa, de Onésimo Silveira, publicado no número 28 da revista Cultura, já foi aqui mencionado, reproduz-se hoje o poema de Ovídio Martins, cuja nota biográfica ficou registada em artigo anterior.

 

Intitulado Os Homens e a Montanha, o poema traduz todo o sofrimento e desespero dos trabalhadores rurais de Cabo Verde num registo de insistente monotonia, claramente associável ao movimento neorealista.

 

OS HOMENS E A MONTANHA

 

Os homens

cavaram sulcos na montanha

olharam o céu sem esperança

e esperaram o dia de amanhã.

 

Mas o dia de amanhã não trouxe novidade.

 

Então os homens

foram à montanha

e cavaram mais sulcos

e esperaram o outro dia de amanhã.

 

Mas o outro dia de amanhã não trouxe novidade.

 

E os homens cavaram

cavaram com raiva

sem dizer palavra

até as mãos sangrarem

mas todos sabiam que esperavam o terceiro dia de amanhã.

 

Mas o terceiro dia de amanhã não trouxe novidade.

 

Já os homens

não esperavam o quarto dia de amanhã?

Sim!

Curvados sobre a terra

cavam, cavam sempre

e continuarão a cavar

até que o seu dia de amanhã

chegue de certeza

num dia preparado

ao cimo da montanha.

 

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06.01.24

Revista Cultura (III)


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O número 15 desta revista apresenta um conto de Francisco Mascarenhas (Francisco Xavier St. Aubyn Mascarenhas, 1928-2016), intitulado Arrependimento, que, tal como a maioria da literatura cabo-verdiana ali divulgada, já havia sido publicado anteriormente na revista Cabo Verde, um "Boletim de Propaganda e Informação" do regime, editado entre 1949 e 1964.

 

Francisco Mascarenhas nasceu no Mindelo, onde frequentou e concluíu os estudos liceais. Licenciou-se depois no Instituto Superior dos Estudos Ultramarinos, em Lisboa, começando a trabalhar como funcionário aduaneiro a partir de 1951.

 

Embora seja autor de obra literária pouco extensa, escreveu ainda para a revista Claridade e para o jornal O Arquipélago, colaborando também com a Rádio Barlavento, do Mindelo, a partir de 1955. Neste mesmo ano surgiu colaboração sua nos números 71 e 72, de Agosto e Setembro, do boletim Cabo Verde, com os textos intitulados Contrabando e As Nossas Ilhas: Uma Aguarela.

 

Do conto Arrependimento transcreve-se um parágrafo:

 

"A culpada de tudo tinha sido a Nuninha. Sim, só ela e mais ninguém. Por causa das suas coisas é que ele estava naquela situação, triste e abandonado. Nha Guida dizia-lhe sempre que deixasse aquela tentação da Nuninha, que apenas queria explorá-lo. Todos diziam à boca cheia, que aquela menina não gostava nem dele nem de ninguém neste mundo. Ela o que procurava era a satisfação dos seus caprichos. Com efeito, nha Guida via as coisas de longe. Tinha sempre pressentimentos. Ela tinha razão. Nuninha nunca se preocupou com emprego. Desprezava lugares de servir. De resto, não sabia fazer nada. Nem cozinhar, nem lavar, nem engomar. Viveu sempre «em pé». Mas andava sempre perfumada, pintada, de nylon e de crepe, de sapatos de camurça, jóias nas orelhas, no pescoço e no pulso. Ela já tinha namorado meio mundo e desgraçado muitos rapazes novos. O seu amor era egoísta, frívolo, passageiro.  Dava a vida para a folia, para bailes, cinema e fumo. Chalino sentia-se infantilmente embeiçado por ela. Todos o aconselharam repetidas vezes a pô-la de parte. Por isso zangou-se com os melhores amigos e esteve indiferente com a própria nha Guida e gente de família, que diàriamente lhe pediam que deixasse aquela menina que só servia para o arreliar, tirar-lhe todo o dinheirinho e sossego. Quase tudo quanto ganhava na baía, debaixo de sol, de suor e descomposturas, ia parar às mãos vesperinhas de Nuninha, que, nem por isso, lha agradecia e deixava de dar as suas voltas duvidosas."

 

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07.11.23

Revista Cultura (II)


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O número 28 desta revista apresenta o conto Destino de Bia Rosa, de Onésimo Silveira (1935-2021).

 

Natural de S. Vicente, onde concluíu os estudos liceais, estudou depois em Portugal, onde frequentou a Casa dos Estudantes do Império. Na última metade da década de 1950, após haver regressado temporariamente a Cabo Verde, passa a viver durante alguns anos em São Tomé e Príncipe, onde convive com Alda do Espírito Santo (1926-2010), fixando-se depois, a partir de 1959, em Angola.

 

Posteriormente passou algum tempo na China, estudando em seguida, ainda durante a década de 1960, na Universidade de Uppsala, na Suécia, instituição onde se veio a doutorar, em 1976.

 

Depois de, nessa década, trabalhar algum tempo na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, Onésimo Silveira tornou-se o primeiro presidente eleito da Câmara Municipal do Mindelo, vindo depois a ser embaixador de Cabo Verde em Portugal.

 

Nas áreas do conto e da poesia publicou Toda a gente fala: Sim, senhor (1960), Hora Grande; Poesia Caboverdiana (1962), A Saga das As-Secas e das Graças de Nossenhor (1991) e Poemas do Tempo de Trevas, Saga, Hora Grande (2008). Em 1960, o número 9 da Colecção Imbondeiro, que apresentou a primeira obra acima referida, anunciava ainda a futura publicação de uma colectânea de contos intitulada Maré Cheia, de que não foi possível encontrar registo de edição.

 

Do conto Destino de Bia Rosa transcreve-se um excerto, corrigindo já as diversas gralhas apresentadas na revista mas mantendo a grafia da época:

 

"O sol a pique tudo abrasava. O barulho ensurdecedor da fábrica de óleo de palma era uma nota fastidiosa no meio da calmaria.

 

Nas senzalas os que conseguiram findar a sua tarefa estendiam-se à sombra para se recomporem; outros limpavam e arrumavam os seus tarecos porque no dia seguinte – domingo – chegavam serviçais caboverdianos.

 

Chegou a tarde e, depois, a noite que envolveu em densa escuridão a roça inteira. Tão sòmente as lâmpadas espalhadas em redor da casa do patrão quebravam, com a sua luz amarelada, a monotonia que invadira as senzalas.

 

Domingo.

 

Nove horas e já todos os serviçais se acham em casa. Preparam com mais cuidado o almoço e as raparigas vestem os seus vestidinhos melhores.

 

O ronco de um motor alvoroçou os caboverdianos, após período de longo e desacostumado silêncio. Era a camioneta da roça que assomava lá ao cimo da encosta que dá para o terreiro. As pessoas que vinham nela, tontas de calor não davam sinal de vida...

 

Chegou enfim!

 

Mantenhas, encomendinhas, abraços, choros, novidades! De todos os lados chovem perguntas.

 

– Trouxemos dois violões, um cavaquinho e um banjo – respondeu Lela Canhota a pergunta de Pedrim.

 

– E grogue? – indagou Pedrim novamente.

 

– Grogue! O que os safados dos guardas não nos tomaram em Fernão Dias está connosco.

 

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

 

Nunca a roça vivera momentos de tanta euforia! Os serviçais pediam mornas. – «Mornas novas»! – gritavam – mornas de B. Léza!

 

À tristeza do anoitecer dos dias anteriores sucedeu uma série de canções dolentes que tanto diziam aos seus executantes – que lhes restituiam parte da alma deixada na terra natal!

 

Pedrim convidou a primeira dama a jeito e, com alguns cálices de grogue já enfiados, desatou a mornar, a mornar..."

 

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12.09.23

Revista Cultura (I)


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Esta revista, cuja publicação se iniciou em 1956, tinha como subtítulo Revista Portuguesa de Educação Popular, parecendo querer evocar, de modo inevitavelmente restrito, o princípio da generalização da cultura para a educação das massas, numa tradição já anteriormente promovida pela revista Seara Nova (fundada em 1921) e entretanto seguida, também, por algumas editoras como a Cosmos (a famosa Biblioteca Cosmos foi lançada em 1941) ou a Inquérito (fundada em 1938). 

 

Tal como se verifica nesta capa, cada número apresentava uma elevada e heterogénea quantidade de textos, os quais, estando limitados às quarenta páginas da revista, têm como inevitável consequência uma concisão dos artigos, que tendem a ser demasiado generalistas e cujos conteúdos roçam, por vezes, a superficialidade.

 

Dirigida por João Alberto Frazão de Faria (datas desconhecidas), a revista tinha no seu quadro colaboradores provenientes de diferentes áreas profissionais, como o economista Afonso Howell (datas desconhecidas), o médico A. M. Estanco Louro (datas desconhecidas), o advogado e escritor Geraldo Bessa Victor (1917-1985), o engenheiro Ilídio Alves de Araújo (1925-2015), o pintor José Júlio Andrade dos Santos (1916-1963), o filólogo José Pedro Machado (1914-2005) ou o escultor Martins Correia (1910-1999).

 

Neste número anunciam-se poetas de Cabo Verde, que são Aguinaldo Brito Fonseca (1922-2014), com o poema Noite, e Nuno Miranda (1924-2022), com o poema Recado, mas surge também outro autor cabo-verdiano, Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002), com o conto Resignação.

 

Transcreve-se hoje o poema Recado, de Nuno Miranda, colaborador de segunda geração da revista Claridade, que até àquela data ainda não lançara qualquer livro mas haveria de vir a publicar os volumes Cais de Ver Partir (1960), Cancioneiro da Ilha (1964) e 40 Poemas Escolhidos (1974), no âmbito da poesia, e Gente da Ilha (1961), Caminho Longe (1974) e Cais de Pedra (1989), na ficção.

 

Poema marcado pela "sôdade", mais do que pela dureza da vivência e sobrevivência no quotidiano do arquipélago, traduz o sentimento do desterrado ansiando por um intangível locus amoenus, que tanto é o seu passado como a memória da sua vida enquanto ilhéu, num lirismo quase onírico que é também marca identitária do movimento claridoso.

 

RECADO

 

Quando aportares

dá-lhes notícias de mim nesta cidade.

 

Diz-lhe [sic] da voz surda estremecendo

e leve e tonta no meu peito, como se nada fora

ao vento que se escapa a este céu onde viceja um cravo,

a flor do meu destino.

 

Diz-lhe [sic] que vou-me às vezes da noite roxa

pelos subúrbios de tons de calmaria

na ronda de lembranças já mortiças

mas, velhas cicatrizes não saradas,

ai de mim!...

 

Não encontro

as ruinhas serpeando pela minha intimidade

o limo nos beirais das ruas do porto

o sonho de mar alto em cada olhar ficado

não vejo

a casa velha do terreiro alto onde ancoravam

os nocturnos das viagens de arrabalde.

 

Que é dos traquetes tombados e dos botes carcomidos?...

 

Só a lembrança de outrora

na flor deste destino.

 

Se te falarem de mim quando aportares

diz-lhes que vai ao longe na cidade a estibordo

a nave desta carne macerada

 e a asa de minha alma, ao céu aberta...

 

© Blog da Rua Nove