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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

21.06.19

Augusto Casimiro - Portugal Atlântico


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Augusto Casimiro (1889-1967), Portugal Atlântico (1955).

 

Compilação de vários poemas datados de diferentes anos – 1914 (Acampamento – Noite, O Zambeze e um Mapa, Fogueira de África), 1924 (Horas Africanas, Oração da Noite Africana), 1944 (Colono), este volume foi distinguido com o Prémio Camilo Pessanha em 1954.

 

Inspirados por todos os territórios coloniais banhados pelo Atlântico, como o nome sugere, predominam, contudo, nestes poemas, referências a Cabo Verde, particularmente às ilhas Brava e Santo Antão, e a Angola.

 

Não deixa de ser interessante o facto de parecerem perpassar, em algumas destas composições poéticas, conceitos também presentes na Mensagem (1934), de Fernando Pessoa (1888-1935), impressão que, do mesmo modo e do ponto de vista estrutural, tende a ser suscitada no início do volume.

 

Com efeito, as primeiras poesias integradas na secção Pela Batalha ao Restelo apresentam títulos sugestivos dessas evocações – Portugal, A Canção do Novo Restelo, Sinfonia do Mar Alto, Hora do Ponto.

 

Curiosamente, para sublinhar toda estas ténues evocações, até a própria expressão "É a hora!", patente no poema Nevoeiro (1928), de Pessoa, surge no poema Oração da Noite Africana, alegadamente datado de 1924, embora num contexto completamente diferente.

 

Um ponto distinto nesta estruturação, no entanto, é a secção intitulada Canto ao Brasil no Mar, que apresenta três poemas dedicados a esta temática.

 

Desta obra, transcrevem-se, de seguida, o poema Fala Crioula e o soneto Prece, inspirados, respectivamente, por Cabo Verde e Angola:

 

 

FALA CRIOULA

 

"Esta fala é sempre nossa.

Fala crioula?... Afinal,

Para alma que bem a ouça,

É fala de Portugal!

 

É uma fala de menina,

Andou ao colo, amimou-se,

Ficou sempre pequenina,

E, de preguiça, mais doce.

 

Ouço-a agora, embala, arrola...

Sabe a amor, sabe a tristeza...

Na voz da gente crioula

Oiço a alma portuguesa...

 

E, às vezes, com mais doçura...

Algumas palavras têm

Mais humildade e altura,

Mais gosto da terra e além...

 

Morabêsa... amor e beijo

Que se não dá, que se fala,

Em que há gosto de desejo

E o aroma que o cravo exala...

 

O que é doce à alma e ao gosto

É sabi... sabe a carinho...

Saber não contém desgosto...

O que é mais sabi... é sabinho.

 

Grandeza... Entre nós humilha

Se não é Deus. Grandeza

Aqui, nas almas da Ilha,

É alegria, é morabeza...

 

Contente... quem diz contente

Entre nós diz alegria,

Mas na boca desta gente

Só quer dizer: simpatia...

 

A fala crioula é nossa

Trouxe-a ao colo Portugal..."

 

 

PRECE

 

"Terra de Angola, Mãe da Primavera:

– Só de te descobrir logo o tocou,

Ao primeiro que veio e te encontrou,

Do teu bárbaro encanto a lei severa.

 

Estás, sempre e sem fim, à nossa espera.

Por ti sofremos. Contra ti pecou

A nossa Alma e a tua nos perdoou.

– Quem amar-te não soubesse te perdera...

 

Desejada e rendida te violámos

E ficamos escravos, de ti... Esta hora

É a doutro encontro, como dois irmãos,

 

Na terra em que sonhamos e lavramos,

À luz igual duma fraterna aurora, 

Um destino mais alto, dando as mãos."

 

© Blog da Rua Nove

10.03.10

Manuel Lopes - Os Flagelados do Vento Leste


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Capa de Marcelino Vespeira (1925 -2002).

 

Manuel Lopes (1907-2005), Os Flagelados do Vento Leste (1960).

 

Manuel Lopes já tratara a temática da fome no seu anterior romance, Chuva Braba (1956; http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/6599.html). É contudo em Os Flagelados do Vento Leste que desenvolve um intenso cenário de desolação, o qual promove o desespero e a degradação humana.

 

Em páginas sofridas e cheias de tensão, o leitor assiste ao desenvolver de uma narrativa marcada por um neo-realismo de carácter insular, que em parte evoca alguma da ficção de temática nordestina do autor brasileiro Graciliano Ramos (1892-1953).

 

José da Cruz, lavrador, e um dos seus filhos, Leandro, pastor transformado em salteador, são as personagens nucleares de duas narrativas que se entrecruzam, traduzindo a impotência dos habitantes da ilha de Santo Antão perante a força dos elementos.

 

Da narrativa transcrevem-se dois excertos:

 

"Aquela tira de carrapato era sinal de trabalho, símbolo de emancipação, na ideia do rapaz. Significava que nele se estava operando a passagem de menino para homem. Na verdade, era o começo da escravização do menino pela terra, sob o disfarce tentador da responsabilidade de homem. Todo o catraio que ajuda o pai no tráfego sério das hortas sente grandeza em ser tratado de igual para igual e em trazer aquele distintivo. Os homens usavam, naturalmente, o cinto para suster as calças, mas também para enfiar a faca. O pai tinha um lato de coiro e um cartuchinho também de coiro – a bainha – para guardar a faca. Os meninos sonham com a bainha de cabedal, emblema de responsabilidade. "Uá! Tu não tens uma faca como eu. Foi nha-pai que deu para eu ajudar ele nos mandados da horta". Então, às escondidas, já picam tabaco de rolo com a faca, e enrolam o seu cigarrinho na palha de milho. Depois enfiam o calção de dril azul ou cotim ou vichi para esconder a vergonha e andarem mais afoitos no meio de raparigas. E aprendem a limpar o suor com as costas das mãos –a princípio por puro espírito de imitação – quando, no fim do dia, empunhando o rabo da enxada, regressam ao terreiro da casa atrás do chefe de família. Porque infância de menino de campo é isto: trocar as mamas da mãe pelo cabo da enxada do pai. Porque o homem do campo não teve infância. Teve luta só, e luta braba. E esperanças e incertezas; a labuta das águas e o drama da estiagem marcados nas faces chupadas e no olhar sério. [p.52]"

 

 

"Era a luta. A luta braba que começava. Contra os elementos negativos. Contra os inimigos do homem. A luta silenciosa, de vida ou de morte. Introduzia-se primeiro no entendimento. Depois, entrava no sangue e no peito. O homem tornava-se a força contrária às forças da Natureza. Por um mandato de Deus, o homem lutava contra os próprios desígnios de Deus. Dava toda a vontade e a sua força. Não podia fazer mais nada. O que está acima da força do homem não pertence aos seus domínios. O homem tinha uma medida. Chuva, vento e sol estavam fora dessa medida, e o homem não se podia incriminar  pelo que sucedia fora da sua medida. Os desígnios de Deus eram superiores à vontade dos homens, mas o dever do homem era lutar mesmo contra esses desígnios. [p. 96]"

 

© Blog da Rua Nove

22.02.10

Manuel Ferreira - Hora di Bai


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Manuel Ferreira (1917-1992), Hora di Bai (1962).

 

Nesta sua obra, aos temas recorrentes na literatura de Cabo Verde – a fome e a migração (ou emigração), Manuel Ferreira acrescenta um terceiro – a música.

 

Iniciando-se em 1943 com uma viagem de S. Nicolau para S. Vicente, uma viagem a bordo do navio N.ª Sr.ª das Areias onde se encontram refugiados que tentam escapar a uma situação de fome e miséria, a narrativa conclui-se com uma leva para S. Tomé, pois a fome, afinal, também assolava S. Vicente.

 

Mas os temas da fome e do constante drama da migração são aqui permeados pela música e pelas mornas de Cabo Verde. Aliás, o próprio título da obra, que significa hora da partida ou da despedida, reflecte os versos de uma morna de Eugénio Tavares (1867-1930), cujos fragmentos são diversas vezes repetidos ao longo do romance:

 

  "Hora di bai,

   Hora di dor!

   Amor,

   Dixa'n chorá

   Corpo catibo"

  

As mornas de Eugénio Tavares são evocadas conjuntamente com outras composições de Amândio Cabral (n. 1935; note-se que Manuel Ferreira credita a célebre morna Sôdade como sendo de Amândio Cabral, sabendo-se hoje que o seu verdadeiro autor foi Armando Soares [1910-2007]), Beléza (pseudónimo de Francisco Xavier da Cruz, 1905-1958) e Ovídio Martins (1928-1999), bem ainda como algumas composições ligadas ao movimento Claridade.

 

É esta música melancólica que perpassa pelo romance, como contraponto às trágicas mortes de homens, mulheres e crianças famintas, ao adultério, às pilhagens dos navios encalhados, às pilhagens dos armazéns de açambarcadores, às cargas dos militares, ao desterro dos membros da oposição... E tudo isto enquanto se espera o milagre da chuva, que chega tarde e nunca perdura:

 

"No dia seguinte chegaram notícias boas. Chovia em Santiago. Chovia em S. Nicolau. Cerca do meio dia caíram também pingos grossos em Santo Antão. E, à tardinha, aí pelas cinco horas, durante minutos, a chuva caíu, caíu, em S. Vicente, grossa e fresquinha, tão grossa, tão fresquinha que a ilha inteira dir-se-ia ficar sob o halo da ressurreição. Perto da noitinha, vieram de novo chuvas violentas, fartas, trazendo ao arquipélago um vigor sadio, uma seiva que penetrava no solo, nas rochas, nos bichos, nos animais, no sangue das próprias gentes. Caía abundante, sacudida por rija trovoada e como que desferida pelos relâmpagos. As ruas do Mindelo eram ribeiras e o povo inteiro saiu a receber no corpo a chuva abençoada. As mulheres arregaçavam os vestidos e corriam, alegremente, de um lado para o outro, cabriolavam, gritavam, saltitavam pelas poças, saracoteavam-se, encharcando-se de água numa euforia desbragada, como se aquela chuva fosse a anunciação de uma nova aurora.

Que rostos tão felizes!

Nha Venância, da janela da sua casa, assistia a este maravilhoso espectáculo, de lágrimas nos olhos.

As populações despertaram e criaram alentos novos.

Mas, ao outro dia, veio a desilusão. Manhã triste, abafada, nem uma aragem sequer. A terra continuava encrespada e a temperatura insuportável, como se um fogo inquieto  e perverso manasse das entranhas da própria ilha."

 

É talvez esta alternância entre a esperança e o desespero que faz de Cabo Verde, na opinião de Nha Venância, uma terra nhanhida, uma terra infeliz, uma terra desgraçada...

  

© Blog da Rua Nove